Eram minhas bisavós feministas? 

Eram minhas bisavós feministas? Sou eu feminista? O que é ?

Tem dias em que me pego pensando se essa verve feminista que habita em mim vem das bisavós que tive, mesmo elas jamais tendo imaginado fazer parte de nenhum movimento  para conquistar o acesso a direitos iguais, até porque, segundo o rastro de oral que delas restou, em suas casas quem mandavam eram elas, e ponto final.

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O fato é que, Alexandrina de Santa Rita de São José, índia Pataxó Meridional das barrancas do Rio Grande, e Ilídia Feliciana de Jesus, escrava alforriada da região do Veríssimo, as duas mineiras, doceiras, parideiras, foram mulheres a seu modo livres.

Dos grotões onde viviam, ambas pobres e iletradas,  nenhuma delas deve ter conhecido a palavra feminismo, muito menos ter tido a mais mínima noção do teor revolucionário do conceito intelectual e filosófico que se consolidou ao final do século XIX, quando eram jovens.

Para minhas bisavós, mulheres roceiras, da lida dura do mato, não haveria como saber daquela primeira onda de feminismo, fortalecida por mulheres inglesas e norte-americanas em territórios inimagináveis. Para elas, a igualdade de gênero era disputada no grito com seus maridos toscos, à beira do rego dágua, batendo o milho no pilão para garantir a farinha do sustento de cada dia. 

Quase com toda certeza, minhas bisas desconheceram  as  lutas das mulheres daquele , como por exemplo pelo direito de ter propriedades, ou de escolher seus maridos, já que, reza a lenda, bisa Alexandrina foi “pega no laço” pelo bandeirante que se engraçou com ela, e bisa Ilídia se amancebou com o portuga que a livrou do cativeiro.


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Como é então que eu posso imaginar que essas mulheres anônimas e invisíveis tivessem algo a  ver com o feminismo?  Pois bem, um pouco antes do início do século XX, elas pariram minhas avós, Enézia e Maria Feliciana, moças do tempo em que mulher não votava, que casamento começava cedo, entre os 13 e os 15 anos e que  falar de , nem pensar. 

Quando a primeira mulher pôde votar, no Reino Unido, em 1918, minhas avós já tinham os primeiros de seus dez filhos cada, já pegavam no trampo antes do sol raiar e as questões prementes da segunda onda feminista, como o aborto, elas resolviam do jeito delas, com picumã de fogão mesclado com chá de losna, como um dia me contou  Vó Maria.

Talvez por isso ambas tenham gerado e criado mulheres de livre pensar, naqueles tempos, nos confins de Minas. Minha Odete, filha de Enézia, nascida em 1929, era brava como a avó e a mãe, de quem herdou o espírito libertário. Dondete, como a chamávamos, estudou pouco na escola, menos de um ano, mas era culta e letrada. Amava o esportes e a e, mesmo nunca tendo lido os livros de Simone de Beauvoir, jamais fez questão de ver filha casada.

Nunca Dondete deu pitaco em namoro, casamento ou divórcio de filha (teve seis) mas, isso sim,  fazia  questão de ter filhas estudadas, “para ter melhor futuro”. Dondete era da opinião que estudo resultava em independência financeira, pois pra ela, “doméstica”, mulher tinha que trabalhar fora e ganhar igual que homem, até pra largar dele, se “desse na cabeça” e tivesse vontade. 

Dondete  sempre achou um absurdo que mulheres tivessem salários menores que os dos homens, e olha que ela nem sabia que no Brasil nós mulheres ganhamos em média 30% menos que nossos colegas homens pelo mesmo tempo e pelo mesmo trabalho. Pois então, Dondete, mesmo sem saber, era uma baita de uma feminista!

Revendo agora sobre os dados da violência de gênero no Brasil, a cada 12 segundos uma mulher é violentada, a cada 10 minutos uma mulher é estuprada e a cada 90 minutos uma mulher é assassinada, segundo organizações confiáveis,  fico lembrando de uma prosa que minha mãe e eu tivemos sobre feminicídio. 

Indignada, Dondete me contou sobre a raiva que sentiu com o assassinato da socialite Angela Vilas Boas, a quem admirava,  “porque mulher nenhuma mulher nasceu pra apanhar nem pra ser matada.” Estivesse viva, imagino como reagiria à discriminação de jovens negras e indígenas, ou à execução de Marielle Franco e, mais recentemente, de Kathlen Romeu, no Rio de Janeiro.

Nascida eu de uma mulher  forte e  irmã de mulheres igualmente fortes, me pego pensando nos avanços do feminismo  e nos desafios que nós mulheres enfrentamos hoje. Penso eu que todas nós, Marias (éramos seis, uma se foi muito cedo, há mais de 30 anos), somos mulheres de , antenadas com o nosso tempo, meio que donas de nossos destinos, mas ainda com o desafio de muito espernear nesta entrada de século XXI.

Temos, é certo, muito mais igualdade de direitos do que nossas mães, avós e bisavós. Mulheres da minha geração – conto 66 marços – nos politizamos na militância, mas seguimos longe dos espaços de poder,  ocupamos apenas 13% das vagas de parlamentares no  Congresso brasileiro. Nós, que lutamos e contribuímos  para a queda da ditadura (1964-1985), não tivemos força o suficiente para sustentar no poder a primeira presidenta do Brasil, democraticamente eleita com 54 milhões de votos.

Tivemos,  sobretudo nos governos Lula e Dilma, avanços nas políticas públicas, como por exemplo  a gestão dos parcos porém fundamentais recursos do Bolsa-Família; vimos nascer a Lei Maria da Penha, que salva vidas; conhecemos a luta do MST para instaurar a equidade de gênero no campo e no meu partido, o PT, pelo menos em tese (na prática a teoria continua sendo um desafio) conquistamos a paridade de gênero nos espaços da direção partidária. 

Mas mesmo diante das conquistas que obtivemos nas últimas décadas, inclusive o direito  de viver nossas orientações sexoafetivas, de procriar menos ou mais segundo nosso desejo, de construir outros modelos de famílias, muitas de nós seguem “pelejando por ajuda” nas lidas domésticas, cumprindo dupla ou tripla jornada de trabalho,  ou se subjugando, por razões várias, às mais diversas formas de racismo, exploração sexual e  violência doméstica.

Concluo pois, pensando que, por herança e por conhecimento, o feminismo encontrou guarita em mim, e disso muito me orgulho. Porém, por mais que queira, mesmo sendo bisneta de Ilídia e Alexandrina, neta de Maria e de Enézia, filha de Odete e irmã da Di Lourdes (falecida), da Martha, da Lúcia, da Sílvia e da Iêda, todas mulheres porretas, para ser feminista mesmo ainda me falta, como dizia Dondete, um queijo e uma rapadura. 

Sigo tentando! 

Margaridas EBC
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

P.S. Não posso garantir que os nomes exatos das minhas bisavós sejam mesmo esses, porque Vó Enézia morreu muito cedo, nos anos 60, quando eu tinha 7 anos, e Vó Maria, mesmo tendo vivido por mais tempo, não era dada a esses detalhes, para ela insignificantes, como por exemplo nomes completos.  E  embora a história corra de geração em geração, também não posso garantir que bisa Ilidia foi escrava, nem que bisa Alexandrina foi pega no laço, porque mesmo sendo índia, a história diz que, na região onde vivia, onde hoje é o atual município de São Francisco de Sales, , a miscigenação se deu pela dominação dos originários pelos chegantes, sem aberta. Na essência, o que ficou foi o registro de suas personalidades fortes, feministas ao modo delas.


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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