A aventura da razão política

A AVENTURA DA RAZÃO POLÍTICA

A aventura da razão política

O primeiro número da revista Surréalisme au Service de la Révolution (julho 1930) publica o artigo “O asno podre”, de Salvador Dali, com uma tese original sobre a “paranoia”.

Por Luiz Marques/Fundação Perseu Abramo

À época, procura-se o “ponto do espírito” para resolver a equação entre o sonho e a vida material. Uma forma concreta e criativa para se situar “entre a água quente da arte e a água fria da ciência”, sistematizar a confusão e aprofundar um descrédito do real. A Terra Prometida está por detrás dos simulacros do terror.

Insights do artista revelam que nos processos paranoicos “a interpretação delirante da realidade conduz a uma imagem dupla”. A “alucinação” contesta a concepção psiquiátrica de “erro” do julgamento. Argui a possibilidade da representação de um objeto ser a representação de um outro objeto diferente. Importa a logicidade interna. Em tal egologia, a ideia da coisa faz verdadeira a própria coisa. Jacques Lacan fala com o pintor e escritor para compreender melhor a epifania.

Alucinações comparecem a levantes messiânicos tipo o movimento de Jacobina e os Muckers, em 1874, no Rio Grande do Sul; ou o movimento de Antônio Conselheiro na Guerra de Canudos, em 1896-1897, na Bahia. Hoje servem aos interesses da extrema direita que mantém sempre ativa uma desconfiança em face da racionalidade cognitiva e instituições da República.

Desregulamentações na economia ganham maior audiência no cenário de um ceticismo generalizado sobre o regramento das virtudes pessoais e sociais. As fake news desempenham o papel estimulante de alucinógenos.

Temos ainda na memória as cenas de delírio em manifestações do arrebatamento verde-amarelo, na gestação e na proliferação dos acampamentos defronte os quartéis militares. O tresvario coletivo permeia as orações ao redor de um Pneu; idem, com os celulares erguidos aos céus para pedir que os Extraterrestres ajudem as Forças Armadas a substituir o Estado de direito democrático, por um regime de exceção. O Pneu e os ETs não são alegorias replicantes; consubstancializam divindades.

Deboches não devem ofuscar o entendimento das emoções dos indivíduos. A psicopolítica fundada na “paranoia crítica” (daliana) ou no “conhecimento paranoico” (lacaniano) implica uma vivência radical, à parte dos princípios filosóficos e ideológicos. O coração que bate no peito do comunista, bate no do fascista. A questão é assumir a condição antissistêmica com bravura e um programa.

Diagnosticar o modo patológico de defesa na paranoia com pensamentos e sentimentos de ameaças é começar pelo fim. A passagem da fantasia paranoica para a prática é uma overdose de negação do realismo. O desejo de matar um presidente eleito pode se insinuar em eleitores descontentes; mas poucos confeccionam um plano para o ato letal. Raros se pretendem os proprietários da história.

O patrimonialismo

Delírios também atravessam as “emendas secretas” do Congresso Nacional. A negociação entre o pusilâmine sem consciência da res publica no Palácio do Planalto e parlamentares venais do Poder Legislativo está na origem da sujeira. As prebendas avessas a uma ética da responsabilidade são o desdobramento natural de um vácuo de governança. “Não posso fazer nada”, “eu não sou coveiro”, “chega de mimimi”, “por isso o cara paga menos para a mulher, porque ela engravida, taoquei?

A mão invisível do mercado endossada pelo discurso da modernização cede lugar à mão visível do patrimonialismo, que subtrai o dinheiro público e esconde as digitais da quadrilha de meliantes para dificultar as investigações sobre o reiterado assalto ao Leviatã. A colonização dos cargos com poderes de deliberação na administração estatal, por agentes sem visão restauradora para corrigir as desigualdades ligadas à gramática da acumulação, legitima os sistêmicos batedores de carteiras.

Por unanimidade, a Alta Corte exige distribuição criteriosa e rastreabilidade para a liberação das vultosas emendas, além de auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU) sobre os repasses. Enquanto o Centrão transaciona uma aprovação da Reforma Tributária, apoiado nas finanças e na especulação lesa-pátria. Em teoria, na democracia brasileira basta ser republicano para estar revolucionário. Contudo, o escárnio por ora move a aventura da razão política para o neofascismo.

A destruição de direitos nas relações do capital com o trabalho nas terceirizações, arrocho salarial e enfraquecimento dos sindicatos dada a desindustrialização abre a porta para o inferno. O rentismo financeiro se disfarça de “investidor”. A delinquência desfila com a bazófia dos que têm cadeira na impunidade. O mercado absoluto protege os acólitos no caminho para o laissez-faire. Trata-se de um sistema que sequer consegue garantir a segurança alimentar da humanidade, apesar de dispor de tecnologia para prover uma existência confortável, digna e feliz para todas e todos tornados párias.

O ideal regressivo é a privatização da política monetária e do erário, reservas naturais nas florestas e parques nas cidades, compromissos trabalhistas e aposentadorias. Ao contrário do labor formal, se incentiva um empreendedorismo individual para uma servidão involuntária; em vez da cooperação, a competição predatória e insana que gera “o homem lobo do homem”. Extraída de uma comédia anterior à era cristã, a frase homo homini lupus é reatualizada pelo neoliberalismo e apropriada pela camarilha canibal de congressistas desprovidos de civismo e maquiados com um falso patriotismo.

Coube a um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) recuperar o óbvio ululante, o paradigma constitucional, ao bloquear o dreno que escoa bilhões de reais clandestinos em currais do atraso. A erosão moral do decoro serve de combustível à velha antipolítica. A chantagem oportunista sobre o governo se intensifica, com vistas a um alienado pacto de submissão. O delírio de poder é evidente.

Vozes, gêneros, cores

O pagamento de R$ 4,2 bilhões das emendas é suspenso, por desacato à transparência na execução (“peculato”) e a Polícia Federal instaura inquérito por suspeita de irregularidades na destinação de valores (“desobediência à ordem judicial”). As emendas sequestram R$ 52 bilhões do Orçamento. Por conta dos juros, rentistas embolsam R$ hum trilhão o que dá uma noção da extravagância. Mas a imprensa incrimina, pelo descarado “desequilíbrio fiscal”, os aportes sociais do programa votado.

É irrazoável e ilegal a fatia do Produto Interno Bruto (PIB) entregue ao clientelismo de deputados e senadores. Viola a Carta Magna e o regime presidencialista, que elites vira-latas tolhem para não governar. Com viés gângster, o semiparlamentarismo brinda a sociedade com casos de polícia.

A mídia amplifica a paranoia do mercado. Para acalmá-lo, governantes queimam US$ 25 bilhões de dólares dos estoques cambiais. Insuficientes para conter a moeda estadunidense que pula de R$ 5,80 para R$ 6,06 e R$ 6,31; no Google, R$ 6,38. O custo para reduzir R$ 70 bilhões de gastos com os pobres, pela pressão do câmbio confere um lucro de R$ 150 bilhões aos especuladores. Como na canção de Chico Buarque: “o tempo passou na janela / só Carolina não viu” (leia-se Banco Central).

O surto delirioso ocorre em duas frequências. Numa, condena o direito a ter direitos da população, na ilusão de uma predestinação de casta. Noutra, evoca a proteção de regiões abandonadas, como se protegesse os pequenos “contra a inflação”. O subterrâneo projeta l’ange et la bête (o anjo e a fera) e potencializa o esgotamento do comunitarismo, nos sintomas da alucinação e sua antítese. Então a nação, refém, é subjugada pelo nonsense do Dr. Simão Bacamarte no hospício da “Casa Verde”.

Movimentos sociais e partidos progressistas reagem, em nome do crescimento sustentável com a geração de emprego e a repartição das riquezas. Porém, a neutralização da mensagem transforma a igualdade de oportunidades (não de resultados), em uma panaceia.

Na disputa de narrativas as cotas sociais, étnicas e de gênero se convertem em reparações afirmativas e, em simultâneo, em um mecanismo de aperfeiçoamento para absorver as contestações ao totalitarismo da mercadoria. Um estratagema para reduzir a conquista popular a um acesso justo e produtivo ao sagrado mercado.

O Brasil requer da análise política: (a) transdisplinaridade, o empréstimo do conceito de paranoia e; (b) ênfase na chama surrealista sob a lassidão histórica, onde o “eu paranoico da civilização” oscila na correlação de forças entre a distopia e a utopia. Desconstituir o status quo é pôr “a serviço da revolução” a pluralidade de vozes, gêneros, cores. A realidade é o caleidoscópio que rearranja novas combinações ou o “asno em putrefação coberto por milhares de moscas e formigas”. – Você decide.

Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul

Capa: Caim ou Hitler no Inferno – George Grosz – Óleo Sobre Tela (i) – 99 x 124 cm – 1944

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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