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Encantou-se a dona sinhá

ENCANTOU-SE A DONA SINHÁ

Encantou-se a dona sinhá

Católica praticante, Augusta Lobo andou preocupada com a mudança do papa na Igreja. A renúncia de Bento XVI a deixou angustiada. “Será que foi perseguição?”, perguntou ela a uma das netas. E emendou: “Tomar conta do mundo inteiro não deve nada ser fácil. Vamos torcer para que dê tudo certo com o Papa Francisco”. Mulher atenta, sabia tudo o que se passava ao seu redor. E isso vinha de muitos, muitos anos.

Por Marcelo Abreu

Maria Augusta nasceu no comecinho do século passado. Viveu todo o século 20. E chegou ao 21 com de menina peralta. Março, 22, ela completou 109 anos. Melhor repetir: 109. Os 109 marços de dona Sinhá. No início de agosto, a mulher mais idosa do Entorno goiano e do Distrito Federal morreu, em casa, quietinha, depois de um suspiro profundo. Sinhá morreu de tanto viver. Encantou-se.

O que ela achava da idade? “Já isso tudo, meu Deus?”, espantava-se. Mulher simples, não se reconhecia no próprio nome, que julgava pomposo demais. Preferia ser chamada de dona Sinhá, que tinha mais a ver com afeto, com colo. A cidade inteira a chamava de Sinhá. Ela foi única. E foi, certamente, a moradora mais ilustre de (GO), distante 80 km de .

Dona Sinhá agarrou-se à vida com gosto de viver. Toda a dela poderia ser contada como se fosse um conto. Um conto bom, daqueles que, quando se chega ao fim, é bom voltar e começar tudo de novo. Decidida, sempre soube o que queria fazer. E como conduziria a própria vida. Aos 16 anos, casou-se com Jonas Lobo, moço quatro anos mais velho. Juraram amor eterno. Tiveram seis filhos. E, todo dia, quando ele chegava da rua, lhe trazia .

Único amor

Mas o destino não quis que essa história fosse muito longe. Aos 35 anos, Jonas, o amor de Sinhá, morreu de tuberculose. Sinhá chorou choro de dor e amor. E jurou que, dali pra frente, cuidaria apenas dos filhos. Enlutou-se. Vestiu preto por 33 anos. “Ele foi o primeiro e único homem que amei na vida”, repetia, com olhar ainda apaixonado. Na sala da casa centenária, Jonas, na parede, acompanhou os passos da amada. “É a foto dele. O Jonas era muito bonito”, suspirava a mulher de 109 anos.

Mas a vida precisou seguir. Dona Sinhá engoliu o choro. Segurou a dor. Havia seis filhos para criar. Era 1938. Viúva aos 30 e poucos anos, mesmo vestida de preto e engolindo o choro de saudade do seu eterno Jonas, foi trabalhar fora (o que era impensável para a mulher dos anos 1930, do início do século passado). O juiz da cidade a nomeou escrivã do cartório. E assim nasceu a primeira escrivã de Formosa, com letra bordada do curso primário do Colégio.

Por décadas, registrou os nascimentos, os casamentos, as certidões de morte do povo de Formosa. E evitou que muitos pais colocassem nomes estranhos nos seus filhos. Quando havia alguma sonoridade duvidosa, esquisita, ela aconselhava o pai que não seria bom para a . Sempre conseguia demovê-lo da ideia.

Jonas devia sentir um orgulho danado da mulher que a sua Sinhá havia de tornado. D. Sinhá, que foi apaixonada a vida inteira, falava dele com carinho imenso. Durante 17 anos, ele a fez a mulher mais feliz do mundo. Inundava a casa com as orquídeas de que tanto a amada gostava. Até morrer, ela eternizou o cheiro na sua memória. Sempre havia orquídeas e rosas pela casa.

Exemplo de vida

Dona Sinhá protegeu a família com força de leoa. Fez todos os filhos estudarem. E de uma coisa ela nunca abriu mão: que todos fossem à missa aos domingos. Devota de Nossa Senhora e do Sagrado Coração de Jesus, dona Sinhá creditava à fé a superação da dor da perda do marido. “Foi o que me fez seguir”, ela admitia. A neta Augusta Lobo, 59 anos, que dona Sinhá chamava de Netinha, emenda: “A fé fez minha viver tanto”.

Dos seis filhos de dona Sinhá, apenas as duas mais velhas estão vivas: Edna, de 90 anos, e Elza, 88. E, sempre, mesmo adultas, pediam-lhe conselhos. Elza se diz feliz e privilegiada por ter tido, aos 88 anos, uma mãe. ”Foi uma bênção”, emociona-se.

Preocupada com a que assola até mesmo a antes pacata Formosa – hoje com pouco mais de 100 mil habitantes –, dona Sinhá dava bronca em Edna, quando descobria que ela andava caminhando sozinha pelas ruas: “Já disse pra essa menina ter cuidado. Formosa não é mais a mesma”. Edna ouvia. Prometia não fazer traquinagem. Peralta, voltava a andar sozinha. Edna adora bater perna, andar pela Praça Rui Barbosa, ir à feira. Dona Sinhá nem sonhava…

Memória e Esperança

Há três anos, uma queda e a consequente fratura do fêmur levaram dona Sinhá a uma cadeira de rodas. Mas isso foi apenas um detalhe. Ela continuou dando conta de tudo – do que se passava dentro de casa e no mundo. É ali, na Rua Herculano Lobo, 232, (boa parte das ruas de Formosa leva o nome da família, que foi uma das primeiras habitantes da região), onde morou por mais de 90 anos, que ela acompanhou a vida. Foi uma observadora atenta.

Dona Sinhá nunca se perdeu dela mesma. Sua casa foi sempre um ponto de encontro. Das duas filhas vivas, dos 25 netos, dos 54 bisnetos e dos 28 tetranetos. Sabia o nome de cada um. Se faltava algum, queria logo saber por que não foi. Dona Sinhá nunca perdeu as rédeas da vida. E isso sem arrogância ou voz alterada.

Aos 109 anos, com lucidez invejável e sem doença crônica – o diabetes passou longe, embora a hipertensão arterial tenha lhe dado sustos nos tempos derradeiros –, dona Sinhá comandava o próprio caminho. Sabia de tudo que se passava ao seu redor. Não perdeu o rumo. Tinha o controle das emoções e dos pensamentos.

Dizia, com sabedoria peculiar: “Nunca fiz nada de errado. Não aceito que as pessoas venham tripudiar de mim”. Centenária, quando a vida parecia não ter mais novidades, ela continuava a fazer amigos. Os mais recentes foram monges que chegaram à cidade.

Eles chamavam-na carinhosamente de Vó Sinhá. Visitavam-na quase todos os dias. Conversavam, falavam da vida, de religião, dos problemas do mundo. Mas, inquieta, ela só desejava uma coisa: sair daquela cadeira de rodas. Pra quê? Ela respondia, com sorriso maroto: “Pra fazer doce de ambrosia pros meus amigos monges”.

Enquanto não levantou da cadeira de rodas, foi organizando a vida com as suas pernas emprestadas. Todo santo dia, antes do almoço, tomava seu cálice de vinho. Era sagrado. Adorava . E não dispensava uma boa carne de porco.
À noite, não jantava. Tomava uma vitamina ou um copo com leite. Dona Sinhá não sabia o que é gripe havia muito tempo, para a alegria e o espanto do clínico Sebastião Rezende, o médico e amigo por quase 50 anos.

Mulher Coragem

Foi ali, naquela mesma casa, que a família sempre recorreu à matriarca, quando queria ouvir uma palavra certeira, um conselho. Dona Sinhá era sábia. Ouvia e dizia o que pensava. Até com as duas cuidadoras em tempo integral (depois da cadeira de rodas, passou a contar com o cuidado de duas moças). Certa vez, uma delas estava com pressa para sair. Dona Sinhá só observou a movimentação.

Quando a moça foi embora, ela sapecou: “Tava doida pra ir namorar na praça”. Gargalhada geral de quem ouviu o comentário. Quando se perguntava pra ela qual o segredo de tanta vida, de tanto otimismo, dona Sinhá não hesitava: “A gente é que faz ela (a vida) ser boa ou ruim. Só depende da gente saber viver”.

E foi assim, com essa sabedoria não aprendida nos livros, que a mulher de 109 anos conduziu cada passo de sua fé inabalável. Dona Sinhá pediu a Deus, todos os dias, que nunca caducasse. Ele atendeu. Por que o pedido tão insistente? “Pra gente ter alguma utilidade na vida, meu filho”, explicava.

A vida a testou. Ela aceitou o desafio. E se tornou uma mulher que comandou uma família inteira. Edna, a filha mais velha, aquela que ainda levava broncas da mãe depois dos 80 anos, não se cansava de elogiar: “O que me encantava nela era a determinação. Sempre foi assim. Sempre soube o que quis”. Augusta, filha de Edna, define a avó: “Ela era coragem, força e fé. É assim que vou vê-la para sempre”.

O bisneto Rodrigo Bittar, de 42 anos, definiu: “Conviver com uma pessoa como vó Sinhá foi ter contato com a história real em carne e osso. E o mais interessante foi poder apresentar essa vivência ao meu filho de 6 anos, que se encantava quando conversava com ela, como se fosse fantasia”.

A neta Myriam Margareth Lobo Benini, de 49 anos, que morava com ela, e acompanhava diariamente as histórias, as emoções e os pequenos sustos da avó, fala, extasiada: “Até antes de morrer, minha avó se levantava perguntando se as roseiras já tinham florido. Será para sempre uma grande lição de vida”. Isabela Lobo Turra, tetraneta de 15 anos, é só elogios à dona Sinhá: “Com o passar dos anos, ela conseguiu ficar ainda mais maravilhosa. Aprendi sempre com seus ensinamentos”.

A família inteira reverenciava os ensinamentos de dona Sinhá. Em cada aniversário dela, estavam todos lá – dos mais novos aos mais velhos. Cantando juntos os parabéns à mulher que escreveu essa linda história.

Tim-Tim, dona Sinhá!

No último aniversário, em março, o que desejar para a mulher que completava 109 anos? Mais vida? Mais luz? Mais sabedoria? Mais lucidez? Mais aniversários? Tudo isso foi desejado. Estar perto dela, ouvir suas histórias e sorver sua inteligência foi uma dádiva. A festa dos 109 anos foi dela, mas o presente foi de todos que tiveram o privilégio de desfrutar de sua sábia, forte e determinada trajetória.

Tim-tim, dona Sinhá! Com uma taça de vinho, claro, a sua bebida preferida. Um brinde à longa vida. À avó que não morreu. Apenas está encantada.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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