Fumaça impõe “experimento natural” na Amazônia
É o que diz o médico Paulo Saldiva, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), sobre o potencial da pior poluição atmosférica por causa dos incêndios florestais no Amazonas, são 22 mil focos registrados só em 2024, e que podem causar doenças como o câncer, doenças respiratórias e cardiovasculares.
Por Wérica Lima/Amazônia Real
Além das queimadas, os amazonenses enfrentam uma nova seca histórica em menos de 1 ano. Hoje (30), o nível do rio Negro chegou 13,19 metros e está a 0,40 centímetros para alcançar a marca histórica de 2023, quando a cota baixou para 12,70 metros, um recorde em 121 anos de medição na estação hidrológica do Porto de Manaus, que iniciou em 1902.
Manaus (AM) – É de manhã e José Roberto Galdino, de 54 anos, se balança numa rede dentro do seu barco-casa de madeira, que possui três andares, e está ancorado, sem previsão de partida, em uma praia da margem direita do rio Negro, no Porto de Manaus, região central da capital da fumaça na Amazônia. “A fumaceira à noite aqui é mais complicada, dá tosse. Se eu levar você [de barco] às 10 horas da noite para olhar do outro lado [do rio], tem dia que tu não enxerga nada, e desse lado também, porque é uma cidade aqui, mas tu não enxerga as luzes”, diz o comandante sobre a névoa das queimadas que encobre a cidade amazonense.
De janeiro até esta segunda-feira, 30 de setembro, foram registrados no estado do Amazonas mais de 22 mil focos de fogo das queimadas – é o pior número em 26 anos do monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), que começou em 1998.
A fumaça das queimadas – prática de madeireiros e fazendeiros após os desmatamentos ilegais da floresta ou das áreas agropecuárias, além dos incêndios criminosos em áreas de conservação e em terras indígenas -, emite gases tóxicos como o gás carbônico (CO2), metano (CH4), monóxido de carbono (CO) e nitroso de oxigênio (N2O). Esses gases também contribuem no processo de aquecimento global permanecendo décadas na atmosfera.
Na saúde humana, como a do comandante Galdino, que acorda e dorme dentro do barco-casa, respirando fumaça, os gases tóxicos provocam danos irreversíveis.
“Isso é mais ou menos como se fosse um experimento natural, sabia? É como se você pegasse um monte de gente e colocasse num ambiente cheio de fumaça, depois você conta quantos morreram, é isso que nós vamos saber depois, nós vamos olhar para trás e ver o que aconteceu”, afirma o médico Paulo Saldiva, patologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), em entrevista à agência Amazônia Real.
Membro dos comitês da Organização Mundial da Saúde (OMS) que estabeleceram os padrões de qualidade do ar e definiu o potencial da poluição atmosférica que causa o câncer, Saldiva diz que nunca viu tanta fumaça pairando no Brasil.
“Os efeitos são de como fumar 4 a 5 cigarros por dia involuntariamente. Se essa situação persistir você vai ter seguramente maior número de casos de doenças respiratórias e cardiovasculares”, explica o médico, de 70 anos de idade, dos quais 20 anos dedicados às pesquisas sobre os impactos das queimadas na saúde humana.
“Você está fumando alguns cigarros por dia sem ter escolha e diferente porque a dose é maior porque o cigarro se acende um, espera um pouco, não se fuma as 24 horas do dia, aqui a concentração é muito menor que do cigarro, mas o tempo de exposição vai durar semanas contínuas”, explica Saldiva.
Como o meio de trabalho de Galdino é o barco-casa, ele é obrigado, de qualquer forma, a ficar respirando o ar insalubre que paira sob o rio Negro no Porto de Manaus. “É a primeira vez em 40 anos trabalhando com navegação que vivencio esse cenário. Fico pedindo pra chover, chove, mas não ameniza. Quando chove, não demora muito para a neblina retornar novamente. Tem vez que fica cheiro de fumaça na roupa. Não tem como fazer nada. É assim, não tem como fazer nada, infelizmente a situação é essa”, conta o comandante.
Além das queimadas, a estiagem extrema que afeta o Amazonas está na iminência de bater um novo recorde da seca, em menos de um ano, com as águas dos rios baixando e evaporando, transformando a paisagem dos leitos em bancos de areia.
Hoje, o nível do rio Negro chegou 13,19 metros e está a 0,40 centímetros para alcançar a marca histórica de 2023, quando a cota baixou para 12,70 metros, um recorde em 121 anos de medição na estação hidrológica do Porto de Manaus, que iniciou em 1902.
“A fumaça esculhamba tudo porque, às vezes, tu quer uma mercadoria para levar para um interior desse, tu não consegue chegar na data marcada, a seca atrapalha, a fumaça atrapalha, o que tu tirava em cinco, seis dias de viagem, tu vai tirar em 10 dias”, afirma o comandante Galdino, que está há mais de um mês sem trabalho por causa da falta de navegabilidade dos rios.
O comandante explica como a fumaça e a seca prejudicam a navegabilidade entre os municípios, dos quais os acessos são os rios. “Correm o risco de ficar sem insumos básicos e até sem energia pela falta do óleo diesel que é transportado nas embarcações. Devido à fumaça, já não é mais possível começar a navegar às seis horas da manhã como de costume. Em longas viagens, geralmente o barco dá uma pausa à noite e retoma as atividades bem cedo”, diz Galdino.
Durante o mês de setembro, choveu 72 milímetros (mm) em Manaus, o que representa 56% da média normal para o mês, conforme informações de estações meteorológicas e satélite do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC).
Mais câncer, infarto, bronquite
Diferente de um vírus, como a Covid-19 que provocou uma pandemia mundial, a fumaça das queimadas não é evidente em exames corriqueiros, mas a longo prazo gera manchas evidentes, enfisema, bronquite e câncer nas pessoas. O câncer, em um fumante, demora em torno de 20 a 30 anos para aparecer e seu pico é na faixa etária dos 50, mas dependendo da genética da pessoa ele pode não depender desse tempo de latência.
“Hoje a maior causa de câncer em não fumante é poluição do ar. É algo em escala global, de 10 a 20% dos novos casos de câncer, principalmente em mulheres não fumantes, são atribuíveis à poluição do ar no mundo”, explica o médico Paulo Saldiva.
Outro ponto é que há possibilidade de diferenciar a origem do câncer. “Esses cânceres eles têm uma assinatura molecular distinta do câncer do tabaco, o tabaco que muda as mutações de genes são um pouco diferentes dessa que dependem de uma via inflamatória, então sim, a poluição do ar é um agente promotor de câncer certamente de pulmão e provavelmente de bexiga, os mesmos que o cigarro dá”, afirma o especialista em patologia.
Além de câncer, outras infecções respiratórias se instalam e podem surgir doenças cardiovasculares com um pulmão enfraquecido onde os brônquios se fecham [tubos por onde passa o oxigênio] e dificultam a passagem do sangue bombeado pelo pulmão. “O coração tem que bater contra um pulmão inflamado”, ressalta o médico.
O fechamento dos brônquios, que ocorre com excesso em pessoas asmáticas, acaba acontecendo em quem respira fumaça intensa. “Quando você fecha o brônquio o vaso correspondente do lado do brônquio também fecha para que o que entrou não seja mandado para fora do corpo, espalhado”, complementa.
“Se o coração tiver insuficiência cardíaca ou uma doença crônica pode significar que ele não aguente, ele já está ali no limite”, ressalta Saldiva.
Outro fator que acontece no processo inflamatório é um aumento na coagulabilidade do sangue. A umidade do pulmão, segundo o médico, tem que estar na ordem dos 90, 95%. Com a baixa umidade do ambiente devido às queimadas e seca, o pulmão precisa compensar e gastar mais água, fazendo com que haja uma concentração maior de sangue.
“Isso significa maior risco de trombo, se o trombo se faz de uma coronária ou numa artéria cerebral, pode dar complicação, se pegar numa artéria coronária que é do coração dá infarto do miocárdio, se for num vaso cerebral dar infarto cerebral”, diz.
Há ainda a questão da ventilação nasal. Saldiva diz que quem bebe cerca de dois litros de água por dia, ventila em média por dia 1.400 litros de ar em 24 horas, o que é muito para se “consumir” de uma qualidade do ar em nível “péssimo”.
“O que entra no pulmão tem uma velocidade de absorção comparada ao do intestino, é quase como se fosse uma injeção endovenosa, então a superfície do pulmão é em torno de 100 metros quadrados, é como manter uma quadra de tênis limpa com essa fuligem caindo em cima, as pessoas que têm cortina, que tem uma superfície muito menor deve estar sujando, o chão das casas deve estar sujo com essa fuligem, imagina o pulmão com 100 metros quadrados”, conclui.
O que dizem as autoridades
Procurados pela agência Amazônia Real, o Governo do Amazonas, a Prefeitura de Manaus e até a Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz) nacional não disponibilizam dados sobre as doenças respiratórias que afetam a população pela fumaça dos incêndios florestais na Amazônia.
A Secretaria de Saúde (SES) do Estado, afirma que entre julho e agosto de 2024 foram registrados 697 casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG). Comparado com o ano de 2023, houve um aumento de quase 8%. A SES não informou se há registro de quantas pessoas desenvolveram a doença por causa da fumaça.
Segundo a secretaria, de julho a agosto de 2022 foram registrados 1.072 casos de SRAG. Após a Amazônia Real reenviar a mesma solicitação dias depois, a secretaria repassou um número diferente: 762 casos de SRAG para o ano de 2022.
A reportagem perguntou ao Ministério da Saúde, por meio de sua assessoria de imprensa, se o órgão vai desenvolver uma nova categoria de dados sobre os índices de SRAG relacionados ao impacto da fumaça na saúde humana. O MS não respondeu até o fechamento desta matéria.