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Perdemos a combinação da senha

Perdemos a combinação da senha

Perdemos a combinação da senha

Por Altair Sales Barbosa

Perdemos a combinação da senha. Em que momento, enquanto fazedores e reprodutores de história deixamos isso acontecer? É pela lenda do Kamayurá que o escritor Altair Sales nos conta desse roubo de e de que ao perdê-las os índios perderam a felicidade e passaram a lutar somente pela sobrevivência. Através desse relato, o autor nos leva a questionar: que caminhos levaram a humanidade a eleger a desnaturização como ideologia e comportamento de vida?

Existe ou existia entre os índios Kamayurá um ritual que consistia em confeccionar figuras zoomorfas, em cerâmica, e atirá-las ao fundo da Lagoa Miararré, no Alto Xingu.

Esse costume era seguido por um , o qual narrava que, lá no fundo da lagoa, as figuras formavam certas combinações que poderiam trazer a felicidade ou a desgraça. Uma vez por ano, os Kamayurá mergulhavam até o fundo da lagoa, para verificar se as combinações estavam corretas. E assim eles fizeram, durante décadas em que foram observados pelos etnólogos modernos.

Porém, com o passar dos tempos, que anda sempre mexendo com as coisas, modificando locais e roubando memórias, os sedimentos argilosos, juntamente com processos de assoreamentos que aconteceram ao redor da lagoa, acabaram por enterrar aquelas figuras. Pior ainda, outras ondas culturais exóticas fizeram com que os Kamayurá mais jovens não mais se lembrassem das combinações, e aos poucos a felicidade e a tranquilidade daquele grupo foram substituídas pela luta aguerrida pela sobrevivência.

Este pequeno relato Kamayurá nos remete a refletir ou revisar, mesmo que brevemente, os caminhos que levaram a humanidade a eleger a desnaturização como ideologia e comportamento de vida, fenômeno pelo qual o ser humano se julga não fazer parte de mundo natural, afastando-se dele e atribuindo a si próprio um poder divino sobre os outros elementos do meio ambiente, o que, consequentemente, vem desencadeando os desequilíbrios contemporâneos.

Desde que surgiram na África, após uma série de processos evolutivos e adaptativos coroados de êxito, estes primeiros humanos conhecidos como Homo-habilis, começaram a desenvolver comportamentos egoístas e extremamente possessivos, que levaram à extinção várias espécies de animais, incluindo alguns dos nossos primos. Também fizeram guerras entre si e, possivelmente, levaram à extinção alguns grupos dissidentes.

À medida que as técnicas foram se desenvolvendo, tornando-se mais eficientes para seus propósitos, o gênero Homo se tornou uma espécie cosmopolita e, por onde passava, deixava marcas de destruição e extinção de espécies. Eles eram ainda caçadores-coletores.

Depois desse tempo, várias noites, vários dias e várias estações se passaram e após longos processos de aprendizagem e de adaptação uma revolução no modo de ser de alguns humanos começa a se desenhar, numa nova forma mais complexa de vida. Eles aprendem a domesticar as plantas e os animais. Esse fator os transforma de nômades em sedentários e os obriga a construírem moradias fixas para protegerem suas hortas e criações, tanto dos predadores humanos, como de outros animais.

Essa nova organização social, chamada inicialmente de aldeias, traz no seu bojo uma série de problemas, que vão desde aqueles ligados aos relacionamentos sociais, até problemas de saúde, partilha dos bens etc. que eram resolvidos quase sempre, com a cisão dos grupos.

De maneira geral, parece que a abundância superou as vicissitudes e logo essas aldeias se transformam em que imediatamente vão se constituindo em impérios. Para a construção dos impérios, os humanos que os conceberam, embora esse processo seja fruto de exigências sociais e políticas, quase que imperceptíveis, num primeiro momento, engendram mecanismos de dominação política.

Num segundo momento, começam a proporcionar as primeiras grandes modificações nas paisagens, exploram pedreiras constroem castelos, templos, campos de jogos, recreação e competições, constroem aquedutos, sistemas rudimentares de esgotos destroem plantações nativas para implantar grandes campos de cultivo e assim segue sua marcha.

Entretanto, é bom salientar, nada disso seria possível sem a criação de uma estratificada socialmente e obediente às divindades e crenças impostas de forma cruel e sanguinária. Dessa forma, foram construídos os grandes impérios, ilustrados por alguns dos quais assim denominados: Império Hebraico, Império Faraônico, Império Grego, Império Romano, Império Otomano, Império Asteca, Império Inca etc. Assim como os novos impérios, que surgiram depois da época das grandes navegações.

Uma dinastia, ligada diretamente a uma divindade, se organizava em torno dela, um grupo de obedientes ordenadores, que por sua vez organizavam grupos de guerreiros, exércitos, que davam ordens, ou escravizavam hordas estranhas ao seu bando para fazerem os trabalhos pesados.

Com o incremento desse modelo deu-se ao luxo de escravizar continentes quase que por inteiro, porque os povos que possuíam costumes estranhos, que andavam nus ou que fisicamente eram diferentes, não eram considerados seres humanos, precisavam ter um Deus e precisavam também pensar como aqueles que lograram mais poderio bélico. Sociologicamente surge a ideologia dos incluídos e excluídos, que permite aos humanos escravizarem outros humanos e os venderem e trocarem como mercadorias.

O modelo de universidade, casa da sabedoria, imposto no mundo ocidental, contribuiu largamente para o embasamento científico da desnaturização do homem, uma vez que separou os saberes em ciências humanas e ciências naturais, modelo cujos frutos colhemos até os dias atuais.

Porém, é bom também salientar que as intervenções humanas, que começaram a permear a ciência, vêm desde a revolução neolítica, com o cruzamento entre espécies de uma mesma característica física, para adquirir certa homogeneidade de raças.

Isso aconteceu com os galináceos e com os cães, seguida pela castração de touros, para impedi-los de deixar descendentes e torná-los mais mansos para o trabalho pesado. A castração dos seres humanos criando a classe dos eunucos, para cuidarem dos haréns, é só a ponta do iceberg de uma grande revolução que estamos começando a vivenciar: a engenharia genética e a inteligência artificial.

Há bem pouco tempo poderia descrever a humanidade atual como o resultado de dois processos evolutivos que se sobrepuseram ao longo do tempo: a evolução biológica, que compartilha com os demais seres vivos e que fundamentalmente consiste na transferência de adaptações biológicas que facilitam a sobrevivência e a seleção das espécies, e a evolução cultural, resultado dos avanços tecnológicos logrados pela espécie humana em sua evolução biológica.

A evolução cultural tem significado, por um lado, a organização do ser humano em grupos sociais que têm gerado problemas demográficos, problemas de saúde, problemas de educação, problemas institucionais etc.

Por outro lado, a evolução cultural agregou ao fluxo básico de energia e de informação e de circulação de matéria o fluxo do dinheiro, como resultado dos intercâmbios e das transações, gerando assim uma série de variáveis econômicas relacionadas com produção, capital, trabalho, comércio, indústria, consumo, níveis de preços, planificação de inversões, maximização de ganho, transferências de tecnologias etc.

A aplicação das diversas tecnologias sobre as biogeoestruturas naturais originou diversas manufaturas (e não só elas) como: artesanato, instrumentos, maquinários etc., como também deu origem a uma grande quantidade de ecossistemas artificiais, cidades, metrópoles, megalópoles, campos de cultivos, áreas de pastoreio, pastagens artificiais, represas, canais de regadio, rodovias, vias férreas, aeroportos, grandes usinas, complexos atômicos etc.

Por último, a evolução cultural tem originado uma série de estruturas culturais ou ideo-facturas: ideias filosóficas, crenças, conhecimentos, valores, normas etc.

Se tudo isso, aliado aos avanços eletrônicos, já nos causa surpresas, às vezes desagradáveis e espantosas, devemos nos preparar muito mais para o que nos aguardam os resultados da engenharia genética, as possibilidades incertas da inteligência artificial, a vida biônica e até com a possibilidade de outras vidas. Somos mais poderosos do que nunca.

As bombas-relógio, que foram plantadas ao longo do tempo histórico, muitas das quais explodiram, porque quem as plantou, esqueceu as combinações da senha. Este fato tem gerado vários desequilíbrios ao meio ambiente, em diversos níveis de escala, cujos frutos já colhemos e estamos colhendo, com as incertezas do futuro, não para o , pois este não depende do homem, mas para o futuro dos próprios humanos.

Não é preciso ter cérebro brilhante nem ser um gênio da futurologia para sabermos que, de uma forma ou de outra, a bomba Z já foi plantada. Também não é necessário ser genial para perceber que vivemos num planeta inteligente, cuja capacidade foi adquirida ao longo de bilhões de anos de experimentação e evolução, por isso cobra caro pelos desequilíbrios provocados pelas intervenções mal planejadas nos elementos que compõem o meio ambiente.

Assim, esperamos que a humanidade esteja bem preparada, para evitar o que aconteceu com os Kamayurá, que esqueceram a combinação das figurinhas atiradas ao fundo da lagoa Miararré.

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Altair Sales Barbosa – Pesquisador do CNPq. Sócio Titular do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás. Pesquisador convidado da Uni Evangélica – Anápolis. Membro do Instituto Cultural e Educativo Bernardo Elis.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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