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(In)Justiça de Transação vs Justiça de Transição

(In)Justiça de Transação vs Justiça de Transição

(In) de Transação vs Justiça de Transição

Lendo esses dias na Socioambiental um artigo[1] que se referia a um fato histórico no qual envolvia a então e atriz, Bete Mendes, e o coronel Brilhante Ustra (que na verdade em nada tem brilho), fico a me perguntar: haveremos de ter um dia a JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO[2] no ?…

Por Marconi Burum

Na síntese do texto da revista, trata-se de uma visita como Chefe de Estado que fazia o então presidente da República, José Sarney ao Uruguai. Tendo como membro da comitiva presidencial, Bete Mendes, a parlamentar se viu completamente embaraçada – não poderia ser por menos – ao enxergar ali, como membro do corpo diplomático do Brasil no Uruguai nada mais, nada menos que o homem que a houvera torturado de maneira cruel nos tempos de chumbo da Ditadura Militar, o coronel Ustra.

Para não causar problemas diplomáticos ao País, a também atriz, Bete Mendes, engoliu a brita na garganta e optou pela elegância e pelo não-confronto com a situação. Entretanto, ao retornar ao Brasil escreveu uma carta ao Presidente narrando os fatos. E Sarney de imediato, ordenou a demissão de Brilhante Ustra do cargo de adido na Embaixada do Brasil no país vizinho. No entanto, sua decisão não apenas não foi cumprida, como o ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, “determinou” que o torturador permanecesse na função.

Sarney, sabendo das sutilezas de uma frágil democracia que acabara de se tentar ignição, deu por encerrada a conversa e não insistiu na deposição do coronel do lugar que estava. A deputada também preferira não dar vazão ao intento e recolheu-se em sua dor – ressignificada.

Vendo o comportamento do presidente Sarney (à época deste incidente), penso que o fato é que enquanto reinar a covardia, a insegurança, ou o medo dos nossos Chefes de Estado, jamais haveremos de passar a limpo a CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA. E isso afeta(rá) para sempre a nossa COGNIÇÃO DEMOCRÁTICA, isto é, não tem como haver democracia de fato, se uma doença crônica teima em fustigar a dor em nossas estruturas sociais e estatais; e se esse pavor provoca, mesmo que apenas inconscientemente, uma confusão cultural no interno da cognição de cada sujeito brasileiro a permitir, de tempos em tempos, os arroubos autoritários (como é o caso dessa tragédia histórica chamada Jair Messias Bolsonaro).

Não basta rasgar a página, ou pior: apenas virar a página; é fundamental que a viremos, porém, após reescrever a Justiça real, com a punição a quem cometeu os crimes que não torturaram e mataram “somente” pessoas, todavia, o significado concreto de Nação, de Civilização. 

Sequer sabemos o que aconteceu no todo desse trágico tempo, o que dirá a ver responsabilizados os que interromperam por 20 anos a locomotiva-Brasil de andar para frente na evolução civilizatória.

Compreendamos esse conjunto de necessidades acerca da visitação à sala secreta da de 64 no ensinamento de José Geraldo de Sousa Junior e Nair Heloisa Bicalho de Sousa, nestes termos: “A democratização da memória permite a uma sociedade apropriar-se de seu passado para escolher melhor os passos a serem dados no presente.

Povo sem memória torna-se incapaz de julgar seus governantes e perde força para construir uma sociedade pautada nos interesses da maioria.

Daí, a importância de garantir que a memória coletiva de nosso País possa conter todos os fatos políticos essenciais, de modo a possibilitar uma interpretação histórica pautada nas subterrâneas dos dominados que se opõe à versão oficial das classes dominantes.

Essa memória coletiva está em processo de construção e necessita de que as diferentes gerações tenham conhecimento da verdade” (2015, p. 26). [3]

Os militares de 64 são os que, na “democracia” silenciaram o Sarney ali no incidente intra-diplomático no Uruguai e, puxa, calaram até mesmo a deputada Bete Mendes; portanto, inviabilizam de se fazer o mínimo gesto de justiça simbólica.

E são os mesmos militares que hoje nos lambuzam com seus leites condensados e viagras. Pior ainda: lambuzam-nos com suas ameaças de sempre, avocando um fantasma não-superado dessa página não-reescrita de (in)Justiça. 

Se lá atrás Sarney tivesse invocado coragem e não recuado de sua decisão, gente como esse general Villas Boas e outros medíocres (de hoje lá na Caserna) que usam a farda para praticar covardias políticas, não avançariam em seus flertes fajutos de lógica civilizatória.

Aliás, é bom lembrar que a única[4] Chefe de Estado que ousou ir mais fundo na revisão e reconstrução da História do Brasil e aproximar o quanto possível a sociedade da chamada Justiça de Transição foi Dilma Rousseff. Foi em seu Governo que se aprovou a criação da Comissão Nacional da Verdade para investigar os crimes e os fatos ocultos do pós-1964 (também suas sequelas).

Dilma pagou um preço alto: temperou ainda mais o seu impeachment (o Golpe de 16) ao aguçar outra categoria da elite arcaica brasileira: os militares. Todavia, mostrou-nos sim que é possível chegar a esta Justiça Cognitiva. Basta ter coragem, teimar mais um pouquinho, mostrar a eles que logo não haverá volta, que os militares terão – também – de se ressignificar e aceitar que o passado pague pelos malfeitos que também afetam sua intergeração (isto é, seus descendentes), embora não percebam.

Enquanto ninguém mais enfrentar esses fantasmas que mandam tanto no Brasil e corroem a nossa cognição democrática, haveremos de ter no máximo esse modelo mostrado (ao medo) pelo presidente Sarney e que chamo aqui de (In)Justiça de Transação. Isto é, bem longe de uma Justiça de Transição, o que tem sido possível é tolerar e assistir o bacanal promovido por certos segmentos das Forças Armadas que investem tão menos em segurança e soberania nacional (honrar o Brasil) para perder seu (e nosso) tempo com o reforço de “suas armas” na aquisição de próteses penianas, comprimidos de Viagra, picanhas e cervejas e bastante leite condensado. 

Do nosso lado (povo) resta sofrer com toda essa transação…

[1] Acesse aqui o tão bem escrito e necessário artigo sobre este fato histórico envolvendo, entre outros, Bete Mendes, José Sarney e Brilhante Ustra: http://xapuri.info/bete-mendes-fui-torturada-por-ele/.

[2] Por síntese trazida por Marcelo Torelly, “na definição institucional da Organização das Nações Unidas, Justiça de Transição alude a um conjunto de processos e mecanismos, políticos e judiciais, mobilizados por sociedades em conflito ou pós-conflito para esclarecer e lidar com legados de abusos em massa contra os , assegurando que os responsáveis prestem contas de seus atos, as vítimas sejam reparadas e novas violações, impedidas” (2015, p. 146).

Ver nota 3 a bibliografia a qual retiramos este asserto.

Ver também ampliação do conceito de Justiça de Transição no sítio: https://memoriasdaditadura.org.br/justica-de-transicao/.

[3] Em: Sousa Junior, José Geraldo de. O direito achado na rua: introdução crítica à justiça de transição na / Orgs.: José Geraldo de Sousa Junior, José Carlos Moreira da Silva Filho, Cristiano Paixão, Lívia Gimenes Dias da Fonseca, Talita Tatiana Dias Rampin. 1. ed. – Brasília, DF: UnB, 2015.

[4] Na verdade, outro Chefe de Estado, o então presidente Luiz Inácio da Silva, em 2009 instituiu o Programa Nacional de Direitos Humanos, que tinha no seu horizonte a criação da Comissão da Verdade no intuito de buscar a verdade histórica sobre os eventos da Ditadura Militar e, como consta na proposta: “promover a reconciliação nacional”.

Contudo, como a Lei foi aprovada apenas em 2011 e Dilma ofereceu toda a estrutura para uma ampla e irrestrita investigação destes tempos da Ditadura, coube a ela o desgaste perante os milicos que se unem às vozes do Congresso Nacional e do Poder Judiciário (além da grande mídia) a promoverem uma das maiores farsas da história: o impeachment de 2016. 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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