Inominável: avanços, recuos e rearranjos institucionais
O histórico político de Jair Bolsonaro como parlamentar deveria ser bastante para nos impedir de enxergar nele uma inteligência rara…
Por Tânia Maria
Penso aqui que um dos nossos maiores desafios em buscar compreender a conjuntura brasileira talvez seja tentar sair do campo das análises pragmáticas, ou diria até binárias, diante de um cenário que é definitivamente complexo.
Desde 2013, com a ida às ruas de um imenso contingente de pessoas de forma até então inusitada e inesperada, passando pela adesão ao golpe e a eleição de um presidente com pautas de ultradireita, seguimos buscando respostas que se enquadrem em determinismos previamente assumidos. Desse modo, parece que só é plausível enxergar 2013, por exemplo, como um movimento de direita arquitetado pela CIA ou como um movimento popular de massas que deu errado.
A consequência da ascensão de movimentos de extrema direita a partir de 2013, fundamentais para a construção do golpe que destituiu uma presidenta eleita sem crime de responsabilidade – realidade inexorável – funciona como uma espécie de bloqueio para que se deixe de enxergar as multiplicidades das ruas naquele momento, para muito além das pautas ou da ausência delas, marcadas pela presença de milhares de jovens que faziam uma luta contra o establishment político do país, sem qualquer conteúdo à direita ou à esquerda. E que tudo tivera início com a luta contra o aumento da tarifa de ônibus, pauta mais que legítima.
Atualmente, as análises de políticos, articulistas, analistas e militantes em geral acerca do comportamento de Jair Bolsonaro, seus atos e falas públicas, são provas dessa ambiguidade. Há os que o consideram um estúpido, incapaz, que mete os pés pelas mãos e fatalmente será derrotado no pleito de 2022 e os que, ao oposto, conseguem vislumbrar em cada passo que ele dá um método superinteligente a guiá-lo. Há os que o consideram um grande engodo e os que o têm por grande estrategista.
O problema de enxergar apenas um dos lados da moeda, tentando decifrar a realidade, é deixar de aceitar que muitas questões importantes possam não ter respostas em primeiros momentos, ou que a busca de sentidos possa ser mais profunda do que se imagina.
O histórico político de Jair Bolsonaro como parlamentar deveria ser bastante para nos impedir de enxergar nele uma inteligência rara e um pensamento estratégico a cada amontoado de aberrações que reverbera, ou, no mínimo, para constatarmos que nem todo excesso verbal que ele promove é para desviar o foco para outra pauta. No entanto, essa premissa está sempre presente em diversas análises que apontam o “método Bolsonaro”, como se fosse tudo programado para alcançar X resultado.
No outro extremo, os que já pregam a derrocada dele, pelas pesquisas, pelos índices econômicos e por seu isolamento político atual, não explicam o fato de que ele detém, ainda, uma base popular e uma aceitação que indicam ter piso e ser suficiente, por enquanto ao menos, para mantê-lo no governo até o final de seu mandato e com possibilidades de ser reeleito. Ao apontarem seu declínio como inexorável, parecem esquecer que para boa parte da elite ainda é melhor manter Bolsonaro, garantindo a aprovação da pauta liberal, do que correr o “risco Lula”. Que a maioria do Congresso não quer o impeachment e que o Poder Judiciário só reage quando os ataques são direcionados a seus próprios membros.
Nossa tentativa de projetar a tendência de futuro a longo ou médio prazo pode revelar prognósticos equivocados se tentarmos olhar para a situação com uma lente que não seja multifocal. Subestimar Bolsonaro e o bolsonarismo é tão equivocado e perigoso quanto atribuir-lhe a sabedoria em cada passo.
O chamado “recuo” de Bolsonaro com a Carta à nação não deveria ter sido uma grande surpresa, exceto, obviamente, pela forma e pelo coadjuvante no processo. Colocar Michel Temer no centro do jogo realmente foi inusitado. Mas ter que dar passos atrás era um imperativo de quem deu um discurso chamando para um golpe que não se realizaria, que quase perdeu o controle dos atos de bloqueio das estradas, que impactaria o abastecimento; que causou reações imediatas na economia; que viu partidos de sua base fazendo movimentos de mudança de posição.
Muitos apostam que o recuo de Bolsonaro não dura. Eu aposto que dura. Ao menos nessa pegada de atacar o Judiciário de forma grotesca. Ele já entendeu que nesse terreno não leva. A tendência indica ser mudar o foco de agora em diante para os inimigos de sempre, de novo Lula, o PT, a esquerda. Não é que Bolsonaro não vá mais promover discursos acirrando as suas bases contra os poderes instituídos. Isso depende do desenrolar das coisas, mas não será nessa etapa da conjuntura. A grande questão continua sendo como as instituições atuarão daqui para a frente.
É preciso observar os movimentos, sobretudo, da cúpula do Poder Judiciário, que duramente reage quando atacada, mas fecha os olhos quando as ações antidemocráticas não lhes dizem respeito.
O que ocorrerá com os inquéritos envolvendo o Chefe do Executivo de agora em diante?
Se a carta de Bolsonaro tiver no STF o mesmo efeito do pedido de desculpas de Sergio Moro, quando divulgou grampos ilegais envolvendo a presidenta da República, a deterioração das relações institucionais se revelará acentuada e os riscos à democracia seguem postos.
Tânia Maria Saraiva de Oliveira é advogada, historiadora e pesquisadora. Membra do Grupo Candango de Criminologia da Unb – GCcrim/Unb. Membra da Coordenação Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD.