LÚCIO FLÁVIO PINTO: MONSTRO NA SELVA

LÚCIO FLÁVIO PINTO: MONSTRO NA SELVA

O monstro na selva

O general Golbery do Couto e Silva, que morreu em 1987, aos 76 anos, foi considerado um dos maiores conspiradores – e teóricos – do golpe militar de 1964.

 Por Lúcio Flávio Pinto

Menos de três meses depois da deposição do presidente João Goulart, ele criou o Serviço Nacional de Informações (SNI). Sua missão seria “supervisionar e coordenar as atividades de informações e contrainformações no Brasil e exterior”.

Quando encerrou o seu mandato como primeiro chefe do órgão, em 1967, Golbery olhou para trás e admitiu: “Criei um monstro”.

Frase de impacto, mas certeira. Infiltrando-se por todos os canais da vida – tanto pública quanto privada – o SNI era um sinônimo de terror, de intimidação e de medo. Sem ser propriamente eficiente como agência de informações.

A má fama levou o principal político civil do golpe, o udenista Carlos Lacerda, a uma das suas maldosas ironias. Ele dizia que o SNI não funcionava às segundas-feiras.

Por uma razão prática: os grandes jornais brasileiros dessa época não circulavam nesse dia. Não havia recortes com os quais produzir as tristemente famosas fichas, que podiam atormentar ou arruinar a vida dos seus desafetos.

O diagnóstico melancólico do general Golbery sobre a criatura que engendrou tinha também outra motivação. Ele não conseguiu impedir que o sucessor do primeiro presidente militar, o marechal Castello Branco, fosse o indesejado marechal Costa e Silva.

Os “castelistas” queriam colocar no posto um integrante do grupo, como o marechal Cordeiro de Farias. Assim, continuariam a manter a combinação de tutela militar com democracia de fachada.

Golbery se retorceria no túmulo se tivesse sabido que o órgão de inteligência do governo federal, destinado a fornecer informações privilegiadas ao presidente da república, se tornara agente operacional, completamente dissociado da sua missão legal, mesmo que secreta.

Na semana passada, a mais notória das mutações do SNI completou 40 anos. Foi em 14 de maio de 1980 que o serviço executou uma intervenção branca no maior garimpo de ouro do Brasil e dos mais famosos do mundo, o de Serra Pelada, no Pará, vizinha à província mineral de Carajás, a maior do planeta.

A notícia de que um veio riquíssimo de ouro fora descoberto numa fazenda da região de Marabá atraiu para o local dezenas de milhares de garimpeiros e aventureiros em geral, cobiçando uma riqueza imediata. A avalanche ameaçava desencadear conflitos e mortes.

Sigilosamente, o governo (o último do regime militar, tendo à frente um ex-chefe do SNI, o general João Figueiredo) preparou uma operação de surpresa, a ser comandada por um oficial do Exército que até então mantinha sua identidade oculta, usando nomes falsos, de doutor Luchini a major Curió.

O coronel Sebastião Rodrigues de Moura se credenciara por sua participação no combate final à guerrilha do Partido Comunista do Brasil no Araguaia, no assentamento de aliados nessa ação (os “bate-pau”) em lotes agrícolas e na assistência ao comando militar regional.

Curió proibiu o consumo de bebida alcoólica e o ingresso de mulher no garimpo. Impôs o toque de recolher à noite e a alvorada com hasteamento da bandeira e o canto do hino nacional. Regulamentou a exploração das “catas” (lotes) de extração do minério e a sua venda obrigatória à Caixa, com pagamento imediato à entrega da produção.

Uma criação inédita na história: um garimpo funcionando em ordem unida como num quartel. Curió tendo o cuidado de se anunciar não como agente do SNI, mas do Conselho de Segurança Nacional, menos conhecido e menos estigmatizado. Dizer a verdade nunca foi o seu forte, como dos “arapongas” em geral.

A racionalização do serviço era um dos objetivos. Outro, muito mais importante, não era revelado. Sem moeda estrangeira para quitar as parcelas da sua enorme dívida externa, o governo precisava se valer de barras de ouro para suprir essa falta.

Fossem barras reais do minério ou fictícias, criadas por fantasia a partir de uma realidade concreta. Era preciso simular uma capacidade de pagamento então inexistente.

Shigeaki Ueki, ministro das Minas e Energia do governo do general Ernesto Geisel, confidenciou ao O Estado de S. Paulo que o Pará tinha ouro suficiente para pagar toda dívida brasileira, um evidente absurdo, que ganhou manchete no jornal.

O sucesso da gestão militar do garimpo levou o presidente da república a fazer duas visitas a Serra Pelada, ao lado de Curió, que comandou uma demonstração de popularidade que o general Figueiredo não tinha nas outras partes do Brasil.

O SNI tentou então criar seu próprio projeto para explorar a madeira que seria afogada pela formação do reservatório da hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, área que era estimada em mais de 200 mil hectares.

Financiamento do Banco Nacional de Paris e do BNCC (Banco Nacional de Crédito Cooperativo) foi injetado na Capemi, pecúlio que administrava pensões e aposentadorias dos militares, para habilitá-la a vencer a licitação – viciada, naturalmente – para a extração da madeira.

A atividade silvicultural seria (como foi) um fracasso, mas o dinheiro seria desviado para financiar a campanha do general Otávio Medeiros, também chefe do SNI, à sucessão de Figueiredo por aqueles que queriam impedir a volta do Brasil à democracia.
Não conseguiram. Como castigo, Fernando Collor de Mello extinguiu o SNI e criou uma nova agência, que sobrevive agora, há 26 anos, sob a sigla da Abin (Agência Brasileira de Inteligência).

O que Golbery diria dessa Abin do governo Bolsonaro? No dia 4, aliás, Bolsonaro recebeu Curió (virou político depois de reformado( no Palácio do Planalto. O encontro não constava da agenda oficial do presidente. Mas foi longo, cordial e alegre.

*A fotografia que abre este artigo mostra garimpeiros em Serra Pelada nos anos de 1980 foi cedida por Angelo Pescetto para a Amazônia Real em 2016.

Fonte: Amazônia Real

Lúcio Flávio Pinto

Jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987.

Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace.

Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014.

Acesse o novo site do jornalista aqui www.lucioflaviopinto.com.  

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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