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Lula, a injustiça e a violência ilegítima do Estado

Lula, a injustiça e a violência ilegítima do Estado

Por Gisele Cittadino/ Carta Maior 

Nem sempre o senso de injustiça e a indignação moral estão distribuídos de forma equitativa em nossa sociedade. Quando policiais militares invadem uma comunidade da periferia e atiram com um fuzil nas costas de um adolescente negro apenas porque ele corria ladeira acima, o sofrimento e a revolta daqueles que lhe são próximos não geram, do outro lado da cidade, um clamor por justiça ou a condenação moral dos assassinos.

Weber nos ensinou que o Estado é o detentor do monopólio legítimo da violência física organizada. Para que tenhamos proteção, precisamos transferir ao poder público, de forma exclusiva, a capacidade de, legitimamente, lançar mão da força para inibir qualquer ato de violência que possa sobre qualquer um de nós recair.

Em outras palavras, as vinganças privadas estão interditadas, pois a violência é monopólio do Estado exatamente porque, dentre outras funções, é ele que nos protege e nos assegura a vida e a liberdade. Não é por outro motivo que tanto nos indignamos diante do tanque de guerra que avança sobre pessoas em uma praça, dos disparos das armas automáticas que abatem crianças e mulheres em campos de refugiados ou do ódio do promotor antissemita que planta provas contra uma mulher judia.

Essa indignação, no entanto, não tem aparecido, pelo menos no triste país que ora habitamos, quando policiais matam jovens negros da periferia, torturam detentos nas penitenciárias, estupram prostitutas em esquinas sombrias ou espancam usuários de drogas em praças imundas. Aqui, há uma interessante mescla: indiferença em relação ao transgressor, falta de empatia com o diferente, arrogância dos que precisam se sentir superiores, ausência de misericórdia.

 

Em outros momentos, o poder do Estado, tomado a partir do interior do sistema de justiça, pode ser utilizado para praticar um outro tipo de injustiça, diferente daquela que não dói igualmente em todos, porque não recai exclusivamente sobre negros, presidiários, drogados ou prostitutas.

O que dizer de um sistema de justiça em que as funções dos promotores são coordenadas pelo juiz, inclusive a deflagração de operações? Em que peças processuais são mantidas sob sigilo para evitar uma mudança de jurisdição?

Em que alguns ministros da suprema corte prestam apoio a procuradores em conversas privadas? Em que uma delegada deixa de protocolar planilhas apreendidas a pedido do juiz?

Em que prazos processuais são abertos para que a acusação se manifeste? Em que o juiz sinaliza ao ministério público a sua discordância em relação ao prosseguimento de uma delação?

Todos esses atos ilegais foram praticados em conluio pelo juiz, pelos procuradores e pelos delegados no caso do processo contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Forças do sistema de justiça se uniram contra um cidadão que não mais ocupava função pública porque pretendiam tirar-lhe a liberdade.

Os seus advogados, ao longo do processo, apresentaram petições que jamais foram lidas, documentos que nunca foram analisados, testemunhas a quem ninguém deu importância. O réu falou em audiência para um juiz que há muito já o havia condenado. Tudo isso foi transmitido e noticiado pela imprensa que aplaudiu e adulou o juiz e os procuradores, vendidos à população como produtos eficazes contra a corrupção.

 

A história desse processo traduz com precisão o sentido da injustiça. Quando, ao invés de proteger, o extraordinário poder do Estado recai de maneira ilegítima sobre um único indivíduo para perseguir, prejudicar, desmoralizar e, finalmente, prender, nos damos conta de como a injustiça pode ser levada ao limite, simplesmente porque não há como enfrentar a magnitude de tantas forças contrárias.

O que fez a nossa suprema corte diante de tal descalabro? Aqui, novamente, uma mescla de possibilidades: ministros apenas covardes, ministros paralisados pelo medo, ministros comprometidos com os amigos, ministros que atuam em busca de aplausos que são tão importantes quanto o ar que respiram. Em outros momentos do passado, a democracia brasileira igualmente precisou de uma atuação digna e responsável do STF. Se isso jamais aconteceu, por que razão ocorreria agora?

Lamentavelmente, perdemos mais uma vez a possibilidade de tentar enfrentar um mal – a corrupção – que é típico de países onde colonização e exploração têm o mesmo significado. A Lava Jato jamais esteve comprometida com o enfrentamento das elites que historicamente se apropriam de partes do Estado brasileiro, quebrando a necessária separação entre recursos públicos e interesses privados.

Sergio Moro, Deltan Dallagnol e Erika Marena, aqui representando o juízo, a acusação e as forças policiais, são apenas a versão contemporânea dos capitães do mato. Identificam-se com a elite e operam em função dos interesses daqueles que, no momento, estão mergulhados na tarefa de quebrar a soberania nacional.

O projeto político que se esconde por trás da Lava Jato precisava tirar Luiz Inácio Lula da Silva do cenário público. Sergio Moro determinou a prisão e o STF assegurou o silêncio. Juntos, atiraram em Lula pelas costas quando ele corria ladeira acima em busca de um novo mandato presidencial. Não há exemplo maior da violência ilegítima do Estado. O que talvez surpreenda nossas elites é que Lula, diferentemente do adolescente negro abatido como um animal pelas forças policiais, tem uma extraordinária capacidade de sobrevivência política que deriva da vontade soberana do povo brasileiro.

Gisele Cittadino é professora da PUC-Rio e membro fundador da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

Fonte: Carta Maior

Capa: Ricardo Stuckert

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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