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MADONNA: UM SHOW DE REVOLUÇÕES

MADONNA: UM SHOW DE REVOLUÇÕES

Durante os últimos anos, especialmente depois de 2018, com a candidatura, eleição e o subsequente governo do inominável, nossa querida e belíssima bandeira nacional foi tomada pelo golpismo e tornou-se não um motivo de orgulho, mas sim um símbolo infeliz de intolerância, ignorância e ódio. 

Por Eduardo Pereira

O abuso inimaginável do uso da bandeira chegou a um nível tão profundo que nem o futebol nacional em ano de Copa conseguiu recuperar plenamente a alegria de carregar nos ombros o nosso belo pavilhão verde, amarelo, azul e branco. 

Ainda hoje, quase dois anos passados da retomada democrática com a eleição do presidente Lula, muitas pessoas continuam não se sentindo confortáveis em sair às ruas com sua bandeira. O show da Madonna, realizado no último dia 4 de maio na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, mudou essa realidade. 

Sem dúvida, com cerca de 1,6 milhões de pessoas presentes, segundo a Riotur, o maior público ao vivo que a artista já alcançou em toda sua carreira, o show impactou tanto a própria Madonna quanto o público brasileiro. 

Em uma única noite, Madonna, adotando o uso da bandeira nacional em diversos momentos, quer seja na tela ou nas vestimentas, realizou no palco uma sequência de atos revolucionários, ante milhões de olhares atentos em todo o Brasil.

“Você sempre esteve aí por mim”, ela disse, expressando sua gratidão ao Brasil durante a apresentação. “Essa bandeira, a bandeira verde e amarela. Eu vejo em todos os lugares. Eu a sinto no meu coração”.

O que vimos no palco de Copacabana, ao longo de duas horas de performance, foi uma celebração não somente das quatro décadas de carreira de Madonna, mas também uma homenagem às mais variadas diversidades do Brasil, comemoradas na apreciação de nossos ritmos, hábitos e formas de existir. 

Há quem possa reclamar que foi necessário o apoio de uma artista estrangeira para resgatar a bandeira do Brasil, mas, naquela noite, Madonna se vestiu de Brasil, encarnou sua alma brasileira e, respeitando e celebrando nossas próprias vozes, deu voz ao canto que vinha, há tempos, ficando entalado em nossas gargantas. 

De fato, muita gente criticou o show, e isso é ótimo. “Pensar é transgredir”, diz a frase popularizada pela autora Lya Luft. Ao longo dos seus 40 anos de trabalho como cantora pop, Madonna se consolidou como o maior ícone artístico de transgressões ao status quo, ajudando milhões no mundo a se aceitarem e se permitirem a ser e a pensar diferente. 

 

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Imagem: Divulgação/Redes Sociais

Para Madonna, afrontar não é novo. Criar polêmicas é uma arte que ela domina há muito tempo, junto com a música. O que muitos conservadores engatilhados não sabem é que a cantora vem transgredindo padrões e quebrando telhados de vidro há muito tempo.

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Muita gente se incomodou com a adoção de nudez e simulações de sexo numa apresentação pública ao vivo, como ocorreu em diversas instâncias no showno Rio. Que se incomodem. Esse é e sempre foi um dos propósitos da Madonna.: instigar corações e mentes.

Ela sempre procurou jogar um rio de luz, “Ray of Light”, naquilo que faz parte da nossa realidade, mas que muitos e muitas de nós tentam esconder ou fingir que não existe. 

A inquietação é a reação natural daqueles que não querem ver estes assuntos levados à luz, talvez por um medo inconsciente de seus desejos e anseios particulares sejam revelados neste processo também, danificando a imagem purista que procuram transmitir ao mundo. Mas é dessa forma que pautas importantíssimas são retiradas das sombras e expostas para todos/as discutirem, comentarem e refletirem.  

O que causa mais mal? A afirmação visual que o corpo nu e a sexualidade são coisas que existem ou a tentativa de empurrar estas questões para debaixo do tapete, ignorando-as e prevenindo que as pessoas sejam conscientizadas sobre as alegrias e os riscos que fazem parte daquilo que é natural para a espécie humana?

No show, durante a apresentação da sua faixa “Music”, versão remix com elementos de samba, a cantora americana convidou uma ícone da transgressão aqui no Brasil, Pablo Vittar, cujo sucesso enorme também é fonte de incômodo em nosso país. 

O dueto histórico, junto com o épico beijo dado a uma bailarina trans em outro momento do show, deixou claro para toda a nação que pessoas não cisgênero existem e estão aqui para ficar.

Foi durante a mesma música que a estrela do pop fez a sua reverência a diversos personagens importantes da nossa história contemporânea como a deputada trans Erika Hilton e a vereadora assassinada que virou símbolo de resistência, Marielle Franco. Todas transgressoras. 

Antenada e engajada, Madonna fez questão de colocar no telão as imagens de Chico Mendes, o maior ambientalista brasileiro de todos os tempos, e a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, símbolo esperançoso da construção deste outro mundo que precisa, de forma urgente e inadiável, ser tornado possível.  

Com a música viver para contar, “Live to Tell”, Madonna fez uma homenagem solene às vidas perdidas pela AIDS, com imagens projetadas de estrelas brasileiras que sucumbiram à doença como Cazuza, Renato Russo e Sandra Bréa.

E é justamente com essa pauta que fica extremamente nítido o papel fundamental e necessário que Madonna e outras artistas transgressoras realizam neste mundo. 

Não foi somente o vírus da HIV que matou e mata milhões de seres no mundo todo. O tabu e a vergonha atrelados à AIDS como à própria sexualidade continua ceifando milhares de vidas todos os anos, de forma completamente desnecessária. Até hoje muitos deixam de se prevenir, testar ou procurar tratamento por vergonha, medo ou ignorância.

Desde o início da sua carreira, nos anos 1980, a Madonna trabalha quebrando tabus e rompendo o silêncio sobre assuntos polêmicos como a Aids. A Agência Aids no Brasil considera a artista como “a primeira cantora internacional a quebrar o silêncio contra AIDS”.  

Em 1989, após o falecimento de um dos seus melhores amigos pela doença, a cantora incluiu uma cartilha informativa sobre a Aids no seu álbum “Like a Prayer”. 

Já nesta cartilha ela escrevia: “Pessoas com AIDS – independentemente de sua orientação sexual – merecem compaixão e apoio, não violência e intolerância” e “o simples ato de colocar uma camisinha pode salvar sua vida”.

Frases que hoje não causariam espanto, porém também já foram consideradas polêmicas e “afrontosas” no passado. Tanto ontem quanto hoje, são necessárias.

“Eu lutarei por você até o dia que eu morrer”. Ao dizer a frase, Madonna não está só realizando uma apresentação musical. Ela está cumprindo uma missão. 

“Aqui estamos, no lugar mais lindo do mundo”, Madonna disse aos fãs na noite daquele sábado, dia 4 de maio. 

Você não precisa ter gostado do show. Você pode se sentir moralmente incomodado/a pelo que a artista decidiu demonstrar no palco. Mas saiba que é justamente com este incômodo que a Madonna realiza a sua missão no mundo, quebrando tabus e, sim, salvando vidas.

Gratidão, Madonna, por respeitar nossas pluralidades e por lutar por nós. Já estamos com saudades! 

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Registro panorâmico do Show da Madonna, realizado em 4 de maio – Foto: Divulgação/ Fernando Maia

Imagem do WhatsApp de 2023 03 13 as 14.52.42Eduardo Pereira- Sociólogo. Produtor Cultural. Sócio da Revista Xapuri. Capa: Reuters/Pilar Olivares TPX

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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