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Margareth Menezes:“Todas as vezes que se tentou sufocar a cultura, ela ressurge”

Entrevista | Margareth Menezes – “Todas as vezes que se tentou sufocar a cultura, ela ressurge”

MinC anuncia o maior aporte de incentivo da história, com os olhos no futuro. À frente da pasta, a artista baiana trabalha para reconstruir as políticas para o setor e ampliar a participação na produção cultural. Aqui, ela fala sobre descentralização e democratização de incentivos a regulamentação de streamings, para garantir os direitos autorais dos criadores brasileiros

Por Bia Abramo e Guto Alves/Focus Brasil

A voz grave é a mesma com qual Margareth Menezes construiu uma bem-sucedida carreira como cantora e compositora desde que despontou na cena do samba-reggae dos anos 1980. Mas agora ela fala de números, leis, decretos, fomentos e, sim, de democracia. Tudo isso com a desenvoltura de quem, há seis meses, não para de trabalhar.

Desde janeiro, quando passou a estar à frente do Ministério da Cultura, Margareth celebra, com propriedade, ter feito mais que o governo anterior em quatro anos. “Quando eu vi a comparação do que foi feito durante esses quatro anos e que o que estamos entregando, vai muito além”, ressalta. 

O cenário era de “ arrasada”. A equipe de Margareth teve que, muito rapidamente, refundar o Ministério da Cultura, antes reduzido a uma secretaria que teve uma sucessão de titulares desastrosos e repetidas tentativas de destruição das ações afirmativas da pasta. Tudo para atender necessidades emergenciais do setor cultural, como a Lei Paulo Gustavo, aprovada ainda em 2022, mas que só se efetivou este ano. 

Nesta entrevista à Focus Brasil, Margareth Menezes faz um balanço sobre o ministério e reafirma o compromisso do governo Lula em pavimentar um caminho para uma nova etapa da cultura nacional. “Quando o presidente Lula fala em relação ao potencial cultural e artístico do Brasil, você percebe que ele tem uma visão moderna, uma visão avançada, que traz para nós novas esperanças”, destaca.

Focus Brasil — A senhora, como Gilberto Gil, está ministra, mas é também artista. Como tem sido essa experiência de estar do outro lado do balcão?

Margareth Menezes — Nunca me imaginei neste momento, nem em entrar para a política, nem estar neste lugar do ministério, mas a vida tem as suas surpresas. Quando recebi o convite do presidente Lula, primeiro, pedi um tempo. Mas concluí que era uma oportunidade, com a minha experiência e vivência artística e do longo envolvimento com o setor cultural, de poder de alguma maneira trazer o meu olhar e a minha sensibilidade para colaborar com o que os setores culturais e artísticos do Brasil precisam. Somos muito carentes de políticas mais assertivas, de organização interna do setor. Também achei que tinha como dar minha contribuição para potencializar essa visão e essa força da cultura como transformação. Transformação social, transformação econômica, emancipação para as pessoas, sobretudo para as pessoas mais vulneráveis. Eu venho dessa realidade, né?  E eu vi que, quando nos governos anteriores do presidente Lula, onde estiveram à frente do ministério pessoas com uma ligação muito direta com o setor — Gilberto Gil e, depois, Juca Ferreira —tivemos um momento bem interessante para o setor cultural do Brasil como um todo. Então eu senti isso, que poderia ser uma coisa positiva. E aqui estamos nós, um grupo de pessoas, gestores, buscando pautas importantes para o setor cultural.

— A gente viveu nesses últimos quatro anos um período de apagamento cultural terrível, tanto do ponto de vista material como principalmente simbólico, na tentativa de imposição de uma ideia da cultura arcaica e moralista, para dizer o mínimo. E, no entanto, a cultura resistiu, como resistiu durante a ditadura. O que a tem de especial nesse sentido?

— Existem vários diferenciais no contexto da cultura brasileira. Porque, primeiro, pela própria de gênero, diversidade de pensamento, diversidade de referências, histórias…  Nós temos um país onde, primeiro há os povos originários, que durante muito tempo sofreram um apagão em relação ao protagonismo da cultura, que foi muito fortemente atacada para a construção da nossa sociedade, mas que era uma base e permanece como uma base importantíssima, que contribuiu para a essa diversidade da construção da identidade cultural do Brasil. Depois tem a cultura afro-brasileira, trazida pelos povos africanos que vieram da África negra. Os africanos, naquele momento escravizados, vindos de vários pontos e povos diferentes da África, vieram misturados, mutilados. Mas a cultura é uma coisa que não se prende. Então, mesmo com todo aquele sofrimento, foi através da cultura, das suas referências, da religiosidade, das suas , que o negro conseguiu superar de alguma maneira uma parcela das adversidades que temos até hoje. Isso se misturou também com a cultura indígena e com a europeia, que chegou aqui e sofreu também essa grande influência, sincretizou. Ou seja, é um grande caldo de tantas diferentes culturas, tão diversas… Quando a gente faz um mapeamento, um estudo sobre isso, vemos como é grande esse legado. Ainda há muito para ser compreendido, muito a ser reparado, mas o que sobra é essa profusão de ideias diversas. E quando há essas várias diversidades, quando elas se encontram, geram outros elementos. Por isso, o povo brasileiro tem essa potencialidade de criatividade, de coisas que realmente surpreendem. E isso precisa ser mais bem compreendido pelo povo, por nós, pelo Brasil. Ele é diferenciado, muito diferenciado. Por isso toda essa construção social faz deste país uma nação que tem ainda muito a oferecer, muito a ser descoberta. E não dá para aprisionar essa cultura. É preciso lembrar também que a cultura foi a primeira ferramenta de emancipação social do povo brasileiro. Não tem como você aprisionar isso. Todas as vezes que se tenta sufocar a cultura, ela ressurge de outra forma, em outras manifestações. Vem uma nova geração que compreende e sintetiza isso de outras maneiras. Enfim, a cultura brasileira é essa força que vai resistir sempre.

— E os trabalhadores da cultura sempre estiveram à postos para defender a democracia brasileira, em momentos-chave da nossa política. Os artistas brasileiros têm a de caminhar lado-a-lado da luta de classes no país…. Como você vê a relação do presidente Lula com a classe?

– Sim, a cultura sempre empunhou a bandeira da liberdade. E o presidente Lula, nesse sentido, mesmo com todos os problemas que o enfrentou, reconheceu isso. Já houve um primeiro, um segundo e agora há um terceiro mandato. E ele sempre teve uma visão sensível à produção cultural, ao setor artístico. Ele realmente tem esse comprometimento. Quando o presidente Lula fala em relação ao potencial cultural e artístico do Brasil, você percebe que ele tem uma visão moderna, uma visão avançada, que traz para nós novas esperanças. Agora estamos num momento de reconstrução. Estamos apenas há seis meses reconstruindo este país. Quando chegamos aqui, era realmente uma terra arrasada — e isso não é exagero. Não é fácil você reconstruir uma estrutura e não só do Ministério da Cultura, mas de todos os ministérios. A destruição que foi feita, que tem agora dados aí dos bilhões que deixados de prejuízo do governo anterior… Isso é um prejuízo não para o governo, mas para a população – e estamos com a tarefa de reconstruir. Quando eu vi a comparação do que foi feito durante esses anos e que o que estamos entregando, vai muito além, estamos entregando mais nesses seis meses do que o que foi entregue antes. E foi muito ruim. Você não pode reduzir o Ministério da Cultura a uma secretaria num país imenso como é o Brasil.

— Eu percebo na gestão da senhora uma preocupação muito grande em descentralizar os fomentos:  tem editais regionais, com recortes étnicos, raciais etc.. O que vem de novidade nesse sentido, de descentralização dos investimentos diretos e fomentos de incentivo fiscal não só em recortes, mas que pulverize o investimento em produções para que mais pessoas possam começar a ter acesso às políticas de incentivo?

– Essa é uma luta que começa desde o primeiro ministério do Gilberto Gil e começou com essa política da Cultura Viva, com Sérgio Mamberti, de acender os pontos de cultura, dos diversos fazeres culturais e vimos que foi uma ideia fantástica. Eu me lembro muito bem porque foi a primeira vez que vimos um ministro da Cultura fazer diálogo direto com o setor cultural. Eu mesma tive o prazer de estar em alguns diálogos que aconteceram lá em Salvador naquela época. Qual foi, portanto, dessa vez nosso primeiro movimento em relação a isso? Fomos ouvir. Abrimos audiências, estamos ouvindo o setor cultural, os agentes culturais, os movimentos. Estamos dialogando agora com 25 mil agentes de cultura, secretários. Estamos sendo ouvidos para a construção do decreto de fomento… Lançamos um decreto, resolução normativa nova e o decreto-Lei Paulo Gustavo. Tudo isso visando entender a necessidade do setor. Então lançamos esses decretos, e a descentralização, começando a partir da liberação da lei pelo , que chega para todas as cidades do Brasil. Abrimos inscrição em 11 de maio, fechando dia 11 de julho e tivemos um sucesso de 98% das cidades inscritas… E essas prefeituras passam os seus editais para que cheguem realmente nas pontas.

Seguiremos esse mesmo padrão de descentralização para a criação da lei de fomento. Também abrimos diálogos, principalmente com as empresas patrocinadoras, para que haja um entendimento dessa necessidade. Porque é claro que o Sudeste, São Paulo e Rio, são grandes centros de produção de cultura artística, devido a todo o campo histórico dessa região, mas esse histórico também se dá porque o fomento sempre foi muito concentrado ali. Mas também precisamos entender que existe , manifestação, produção cultural em todas as partes do Brasil. Desde os primeiros decretos também temos essas orientações de descentralização e de cotas. Em Salvador, por exemplo, a Lei Paulo Gustavo determina 30% para descendentes de , eles vão aumentar para 50%. Isso também é uma maleabilidade. O secretário de Fomento, Nilton Menezes, tem se reunido com o setor dos patrocinadores, começando pelos estatais, mas oferecendo esse entendimento também para todas as empresas patrocinadoras e buscando fazer trazer a ideia de que investir em cultura é positivo. Então estamos nessa direção, temos que dar mais um tempo e construir também os efeitos dessa nova política cultural, principalmente buscando também atingir essa diversidade do povo brasileiro.

— A senhora falou bastante da cultura indígena e afrodescendente, que são manifestações culturais muito marginalizadas e até mesmo desconhecidas pela população em geral. E não coincidentemente, mas estruturalmente ligadas às populações mais pobres. Como é que este ministério está dando esse estímulo devido para fazer emergir essas manifestações, para que isso seja mais conhecido?

– É justamente nessas manifestações que estão as fontes da nossa identidade nacional. É a partir daí que a gente tem o nosso bem maior, a identidade nacional, a partir dessas manifestações populares é que os artistas se inspiram e que fazem o diferencial. Quando a gente fala da bossa nova, do afrosamba reggae, do sertanejo, do que quer que seja, não se pode fugir de pensar quais influências das suas identidades culturais, que vieram de determinada região. E é a mesma coisa: essas manifestações culturais regionais mais nas margens, precisamos dar apoio, porque elas se fazem de gente, grupos que surgem de uma maneira espontânea… É natural ter um grupo de pessoas que tem essa memória e alimenta essa memória, investe na roupa, na alimentação de uma maneira a criar ali um espaço de preservação dessa história. E que precisa sim, ter a oportunidade de fomento para se manter. Estamos com essa visão, tanto que, na nossa instrução normativa nova, existe uma maneira específica desses grupos se inscreverem. Nós estamos considerando as tecnologias digitais, o vídeo-depoimento também como ponto positivo para que essas manifestações tenham acesso ao fazer cultural.

— O mercado e a mídia, de maneira geral, incidem e operam  fortemente para que seja a iniciativa privada a cuidar de tudo que se refere à cultura. Isso veda o acesso à cultura de boa parte da população. Como contornar esse problema? Como é que essa grande produção diversa que a senhora descreveu tão bem vai chegar até as pessoas?

— Seria muito bom se estivéssemos num país onde a sociedade civil e as empresas já estivessem num outro patamar em relação a essa consciência da necessidade de investir mais na produção cultural e no consumo de cultura. Seria muito bom se todas as empresas e a sociedade entendessem isso e fosse assim, meio que uma coisa antropofágica, de a gente consumir aquilo que a gente produz e conhecer o valor da nossa cultura. Mas isso ainda não acontece. Neste momento, que estamos em reconstrução, precisamos dar o exemplo e é o que estamos fazendo. Dá pena ver tão criticada uma lei como a Rouanet, que já proporcionou muito mais benefícios de transformação social e política, econômica e pública, por assim dizer, do que malefícios.  Agora, é claro que essa urgência da descentralização vem de uma reclamação de que a produção cultural ficava muito sequestrada pela região populosa, principalmente no Rio e em São Paulo. Mas isso é fruto de uma visão das empresas. Se deixarmos só por conta das empresas, é claro que vão buscar fazer aquilo que é mais do interesse delas. Essa não é nossa visão. Mas isso só será possível a partir do momento que a gente conseguir fazer esse setor mostrar a sua positividade. Organizar essa relação com as indústrias, com os patrocinadores, buscando que isso se estabilize, como uma política de estado. Aí nós vamos chegar ao ponto onde o Estados Unidos chegou.

Então, neste momento em que a nova indústria começa, ela se realimenta. Temos as pessoas que vão para Nova Iorque, e ficam deslumbradas com a Broadway, mas não sabem que essa produção é fruto de algum momento de uma grande política de investimento cultural que os Estados Unidos fizeram. A Itália hoje é tida como um país com grande produção cultural que também foi fruto de uma ideia de reconstrução de país e o investimento da cultura foi um dos grandes focos do governo. E assim também na Espanha ou na França. É nisso que nós vamos apostando, em experiências positivas que já foram feitas e estamos trazendo essas experiências positivas e aplicando aqui, porque temos esse potencial de fazer isso acontecer e mostrar que contribuir para o econômico da cultura do país vale a pena.

Nós estamos em um governo que acredita nesse potencial cultural e por isso precisamos organizar e profissionalizar mais o setor de maneira ampla, criar oportunidades, centros culturais, cinemas, por exemplo. Quando a gente vai fazer um levantamento de quantas e quantas casas de cinema existem no Brasil são pouquíssimas. Nesse momento que o audiovisual começa a crescer, precisamos fazer uma política para trazer novas telas ao cinema, descentralizar isso. A Ancine está com esse novo projeto que lançamos agora, a Ancine e a Secretaria de Audiovisual… Tudo já começa se mover. Eu gosto de falar isso sobre esse momento em que estamos injetando fomento para fazer esse desenvolvimento acontecer. É difícil para esse grande país com 210 milhões de pessoas que tem 7 milhões de trabalhadores e trabalhadoras no setor cultural. Tudo no Brasil tem essas proporções gigantes.

— Está no horizonte da senhora e do MinC a regulamentação dos streamings no Brasil, incluindo a cota de tela? Nos últimos anos, os direitos dos criadores do audiovisual foram muito atacados, em toda a cadeia de produção.

— Desde o primeiro momento! Estamos com várias ações, alinhando também com o Congresso algumas iniciativas. Estamos com a secretária Joelma Gonzaga e com o secretário de Direitos Autorais, Marco Souza, contando também com alguma força dentro do Congresso. Estamos mobilizados em relação a isso porque a regulação do streaming é uma luta mundial. Tivemos uma reunião com a embaixadora dos Estados Unidos e tocamos neste assunto. O presidente Lula se manifestou lá em Bruxelas sobre isso. É um tema que estamos acompanhando e agindo também e  queremos ter boas notícias logo, porque é importantíssimo. O Brasil é o segundo consumidor de streaming entre os países do mundo e esse não é o retorno que temos no direito dos trabalhadores e produtores. A mesma coisa também em relação às cotas de tela. Estamos nos movimentando e acredito que vamos ter algumas vitórias, mas o processo é o processo, porque esse assunto da regulamentação dos streamings é sensível no mundo inteiro, inclusive na América Latina. O Mercosul é importante nisso. Estamos com uma ideia de mobilização com o Mercosul, e isso vai trazer para o setor da indústria criativa uma maio capacidade de mobilização. Será uma injeção de ânimo e também de orgulho.

— Uma parte muito importante do trabalho do MinC é o da preservação do patrimônio, inclusive do patrimônio imaterial, como a senhora mencionou. E outra que é a de estímulo e incentivo às novas produções em todas as áreas, em todos os setores. Vai ter tempo e dinheiro para tudo isso?

– Estamos trabalhando desde o primeiro momento para que haja tempo para tudo. A gente tem hora para chegar e não tem hora para sair. Nisso, o presidente Lula nos incentiva muito pela própria maneira que ele tem de se dedicar a esse trabalho. Sobre a questão do dinheiro, pela primeira vez o Ministério da Cultura está tendo um orçamento volumoso, muito pela questão da Lei Paulo Gustavo que era para ter sido executada durante a pandemia, mas foi vetada pelo Bolsonaro. Não tínhamos ministério, não tínhamos como socorrer e justo naquele momento terrível, em que muitas pessoas estavam morrendo… Nesse momento foi vetada a execução de uma lei que era tão importante e emergencial. Então, R$ 3,8 bilhões estão chegando agora em todas as cidades do Brasil. Vamos buscar o que for possível para investir na cultura que o país merece. Estamos estudando muito aqui no ministério, formamos uma equipe voltada para isso, equilibrada, com pessoas mais maduras, um grupo de gente mais nova também e todo mundo a fim de fazer essa transformação. É muito bom ver que todo brasileiro que gosta de cultura está tendo novas oportunidades, podendo agora para reafirmar nossa democracia, especialmente depois do que vivemos no dia 8 de janeiro, uma verdadeira tentativa de golpe que não se limita àquela data. E isso nos fortalece, saber escutar e conversar com a força desse povo, dessa geração nova. Tenho dito isso também. Vem chegando aí uma nova geração da política com outra visão. É preciso mudar, é preciso realmente fazer essa transformação.

Fonte: Revista Focus Brasil Capa: Antônio/Agência Brasil


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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