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Marina Cardoso Anchises: uma mulher de luta

Marina Cardoso Anchises: uma mulher de luta

Desde 2018 integro o elenco de dançantes do Grupo PÉS, teatro-dança com pessoas com deficiência, projeto de extensão da UnB, aberto à comunidade, criado e dirigido por Rafael Tursi. O grupo atualmente conta com 20 pessoas, sendo que a metade apresenta alguma deficiência física ou intelectual.

Por Mônica Gaspar  

o PÉS, há sete mulheres consideradas adultas cronologicamente que apresentam deficiências, genéticas ou congênitas, com ou sem comprometimento intelectual, e uma dançante com deficiência adquirida depois de adulta, sem comprometimento intelectual.

Marina Anchises, nossa entrevistada, está no Projeto PÉS desde a sua criação, em 2011.

Marina – Eu me chamo Marina Cardoso Anchises, tenho 33 anos e tenho paralisia cerebral porque nasci com duas voltas do cordão umbilical no pescoço, provocando falta de oxigênio no cérebro, e isso afetou a coordenação motora, altera o equilíbrio, tenho espasmos nos braços e nas pernas, preciso da cadeira de rodas, a minha fala não é convencional, mas dá pra entender, e preciso de auxílio para alimentação e ir ao banheiro. Nasci em Brasília, no dia 6 de junho, portanto, sou geminiana.

Segundo o Ministério da Saúde (MS), a Paralisia Cerebral (PC) é a deficiência mais comum na infância, é caracterizada por alterações neurológicas permanentes que afetam o desenvolvimento motor e cognitivo, envolvendo o movimento e a postura do corpo.

Essas alterações são secundárias a uma lesão do cérebro em desenvolvimento e podem ocorrer durante a gestação, no nascimento ou no período neonatal, causando limitações nas atividades cotidianas.

Apesar de ser complexa e irreversível, crianças com PC podem ter uma vida rica e produtiva, desde que recebam o tratamento clínico e cirúrgico adequados às suas necessidades. Este é o caso de Marina.

Marina – Sou museóloga formada pela UnB. Preciso falar da luta da minha mãe e principal cuidadora, Cristina Cardoso, para me colocar na escola regular. Ela mesma pode contar como foi: “Desde que descobriram que Marina tinha paralisia cerebral, ela realizou muitas atividades a partir dos 2 anos e durante todo o período escolar – fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, ecoterapia, natação, em escolas particulares e públicas como o centro especial de Taguatinga. A fisioterapeuta aqui de Brasília sempre quis que a Marina fosse pra escola regular porque, segundo ela, Marina precisava ser alfabetizada. A equipe psicopedagógica do Ensino especial aconselhou a mãe a matricular na escola regular, aos 6 anos. Quando Marina fez 7 anos, eu a matriculei na Escola Classe 17 de Taguatinga, onde eu era professora. Marina ficou nessa escola até o quarto ano. Uma curiosidade é que eu me aposentei em maio do ano que Marina entrou na escola e, partir daí, passei a frequentar a escola na qual dei aula por muitos anos, agora como cuidadora da Marina, que necessita de ajuda para ir ao banheiro, alimentar-se e, conforme foi sendo alfabetizada, eu escrevia as lições e deveres de casa. Até dançar quadrilha, eu dancei com ela. Assim foi até o segundo grau, Marina e eu frequentávamos diariamente a escola. Quando terminou o segundo grau, Marina ficou uns anos sem estudar, apenas fazendo cursos. Quando resolveu fazer vestibular para a UnB passou para Museologia, sem precisar de cotas. A partir daí, Marina se virava sozinha. Eu era apenas a ‘mãetorista’”.  

Marina – No começo do curso foi bem difícil a relação com os colegas, muitos não se aproximavam. Com a convivência, eles foram vendo que eu era uma pessoa comum, igual a eles. Teve um amigo que desde o primeiro dia ele se aproximou de mim. Mas houve uma menina que questionou a professora por que ela havia tirado uma nota menor do que a minha, e a professora falou: porque ela (eu, Marina) estudou e você não.

Mesmo com as dificuldades de relacionamento, Marina é uma exceção no perfil escolar das pessoas brasileiras com deficiência, uma vez que os resultados da PNS (Pesquisa Nacional de Saúde IBGE-2019) mostraram diferenças relevantes entre o nível de instrução das pessoas a partir de 18 anos de idade com deficiência em comparação com as sem deficiência.

Quase 68% (aproximadamente 12 milhões de pessoas) da população com deficiência não têm instrução ou possuem o ensino fundamental incompleto, enquanto para as pessoas sem nenhuma das deficiências investigadas a taxa é de 30,9%. 

A porcentagem da população de 18 anos ou mais com deficiência, com nível superior completo foi de 5,0%, enquanto as pessoas sem deficiência, 17,0%. Em 2019, www.informasus.ufscar.br. apenas 16,6% da população com deficiência tinha o ensino médio completo (ou superior incompleto), contra 37,2% das pessoas sem deficiência.

Marina – A partir de segundo semestre de 2022, o PÉS, por meio de um projeto aprovado junto ao FAC-DF – Fundo de apoio à cultura do GDF, tem remunerado os/as dançantes, fora isso, é muito difícil arrumar trabalho porque, por mais que eu tenha a formação, eu não tenho experiência. Não consigo arrumar emprego na minha área que é a museologia. Eu faço bicos fazendo desenhos personalizados em cima de fotos que a pessoa quiser. Faço os desenhos com o pé, o meu pé que movimenta o mouse.

Sobre a empregabilidade das pessoas com deficiência, a PNS – www.biblioteca.ibge.gov.br informa que as pessoas com deficiência apresentaram, em 2019, taxas de participação (28,3%) e de formalização (34,3%) muito menores do que as das pessoas sem tal condição (66,3% e 50,9%, respectivamente), sendo a desocupação observada nesse contingente (10,3%) maior do que a verificada entre as pessoas sem deficiência (9,0%).

Tal diferença de 1,3 ponto percentual, embora possa parecer pequena, é digna de nota, pois a desocupação é negativamente correlacionada com a idade, e as pessoas com deficiência são relativamente mais idosas do que as pessoas sem deficiência.

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Foto: Divulgação / Marina Anchises

Ao examinar os extremos da distribuição por idade, em 2019, verifica-se que a taxa de desocupação das pessoas com deficiência de 14 a 29 anos de idade era 25,9%, contra 18,1% para aquelas sem deficiência, enquanto para as pessoas com deficiência de 60 anos ou mais de idade a desocupação era 5,1%, ante 2,6% para as pessoas sem tal condição.

Sobre relacionamentos sociais e sexuais, no Grupo PÉS, das sete mulheres adultas que têm deficiência genéticas ou congênitas, todas são solteiras e a grande maioria não se relaciona amorosamente com parceiros ou parceiras, à exceção de Marina, que teve alguns namorados, e de outra dançante que teve um AVC de largas proporções, ficou viúva e se casou recentemente.

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Fato: Divulgação / UnB agência

A vontade de se relacionar e de mostrar a sua beleza acompanha Marina desde sempre; certa vez, com vinte e poucos anos, ela disse ao Rafael Tursi, diretor do PÉS, que gostaria de dançar de forma sensual.

O desejo de Marina transcorre no sentido de quebrar uma barreira imposta para as mulheres com deficiência. A sexualidade das pessoas com deficiência – especificamente das mulheres – demanda um olhar delicado e uma qualidade de pesquisa, que ultrapassa o foco deste trabalho. Em 2020, o “Coletivo Feminista Helen Keller” lançou um guia (www.respeitarepreciso.org.br) em que se discutem várias questões acerca das mulheres com deficiência, inclusive a sua sexualidade.

O guia reforça a importância de fóruns e de atitudes políticas e sociais para que se debatam várias e urgentes questões acerca da mulher com deficiência e de sua sexualidade: Há, portanto, uma visão estereotipada e patologizante da sexualidade da pessoa com deficiência, sobretudo da mulher com deficiência.

Qualquer que seja a manifestação sexual das pessoas com deficiência, por mais sutil e discreta que seja, pode ser entendida como anormal. Esses pensamentos equivocados sobre a nossa sexualidade alimentam o ciclo vicioso de práticas discriminatórias e de violências psicológicas e sexuais.

A Lei Brasileira de Inclusão, em seu Capítulo sobre Direito à Saúde, traz que o “respeito à especificidade, à identidade de gênero e à orientação sexual da pessoa com deficiência precisa ser assegurado pelos serviços de saúde destinados a essa população. No PÉS, no espetáculo Klepsydra (2011-2014), unindo-se o desejo de Marina ao tango, diretor e elenco criaram uma cena na qual duplas de cadeirantes e andantes bailam uma dança argentina.

Marina – A minha família me aceita do jeito que eu sou e não tem vergonha de mim. Já tive alguns namorados, mas é bem complicado, já namorei pessoas com e sem deficiência. Nos relacionamentos tem muito preconceito de pessoas de fora, dizendo que você não é capaz de despertar interesse. A pessoa não acredita que o homem convencional se interesse por mim, eles acham que é interesse financeiro. Lá no PES é o meu tudo de bom, tanto que eu estou lá há 12 anos, porque lá não tem julgamento. E eu posso ser quem eu sou e até ir além dos limites que a sociedade impõe pra mim. (…) Sobre o preconceito, Marina diz que: Quando eu estou na rua com a mamãe ou com outra pessoa, quando eu falo, as pessoas falam com espanto: – nossa, ela fala! Pergunto se melhorou ou piorou com tempo:  Depende muito do meio que a pessoa está. Na UnB eu tinha mais autonomia e era menor o preconceito. Uma vez em Bariloche, percebi que mesmo as pessoas do PÉS não queriam sair comigo e elas sabiam da minha luta diária. A gente que é deficiente tem q estar o tempo todo provando que é capaz de viver como qualquer outra pessoa.

Sobre o perfil das pessoas com deficiência no Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE-Pesquisa Nacional de Saúde – 2019) aponta que 8,4% da população brasileira acima de 2 anos (17,3 milhões de pessoas) têm algum tipo de deficiência. Quase metade dessa parcela (49,4%) é de idosos, sendo mais feminino (9,9%) do que masculino (6,9%), e mais incidente entre as pessoas pretas ou pardas (8,7%) do que entre as brancas (8,0%).  São pessoas que precisam de carinho, cuidado e respeito por suas decisões. Marina é uma delas:

Marina – O cuidado é bem-vindo porque eu preciso realmente de ser cuidada. Agora, isso não significa que eu dependa dela e da autorização dela, porque eu sou uma mulher adulta e sei tomar as minhas decisões. Quando eu falo não, é não. Quando eu falo sim, é sim.

Monica gasparMônica Gaspar – Doutoranda na Universidade de Brasília com pesquisa sobre os entrelaçamentos entre as artes cênicas e as pessoas com deficiência.  Há mais de uma década escreve, dirige e atua em grupos de teatro que contemplam em seus elencos pessoas com corpos e comportamentos considerados atípicos. Foto: Divulgação / Samia Alien. 

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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