Morre, aos 82 anos, a educadora marxista chilena Marta Harnecker
Referência em pesquisas sobre a esquerda latino-americana, ela faleceu em decorrência de tumores no cérebro
Da Redação do Brasil de Fato | São Paulo (SP)
Em 1968, Marta regressou ao Chile, depois de passar cinco anos estudando na França. Com suas raízes fincadas em seu passado como militante juvenil na Ação Católica Universitária, começa a militar no Partido Socialista em sua volta à pátria.
Dos anos cristãos iniciais, ela ainda guarda um ensinamento: “Eu sempre disse que existe algo em comum entre o cristianismo e o marxismo; e é que o cristianismo te orienta a amar as pessoas, e o marxismo te dá os instrumentos para que esse amor seja realidade; transforme as circunstâncias, transforme a sociedade, para que o amor possa ser real”.
Já no Partido Socialista, ela se dedicava ao trabalho de base, a partir da formação marxista que tinha, para debater liberdade, democracia, meios de produção, meios de consumo e para responder à campanha contra Allende, que o associava com a chegada de uma ditadura, de um totalitarismo. “Para dizer às pessoas que não vão tirar delas a geladeira, que não vão tirar seu carro, isso não tem nada a ver com o marxismo”, rememora Marta.
Uma de suas primeiras frentes de atuação foi produzir uma coleção de livros com uma linguagem simples voltada aos trabalhadores. “Esta tarefa me deixou apaixonada. Ver como se podia chegar até as pessoas com uma coisa fácil. Minha paixão é isso: como chegar com as ideias simples até as pessoas”.
“Como, além disso, eu militava no Partido Socialista na época de Allende, nós fazíamos reuniões com camponeses e operários. Eu tinha antes uma experiência nas cátedras universitárias, e na cátedra universitária era uma discussão eterna”, relata. E complementa: “Os trabalhadores aprendiam para aplicar imediatamente, então eu me apaixonei por esse trabalho com esses setores”.
O papel do jornalismo popular
Marta também fundou e dirigiu o jornal Chile Hoy, durante os anos de Unidade Popular – o que qualificou como “uma experiência muito linda” –, além de ter seguido com seu trabalho jornalístico em entrevistas como as que fazia com o povo e com figuras políticas importantes, como o presidente venezuelano Hugo Chávez.
Sobre Chile Hoy, ela recordou: “Era uma revista tipo tabloide e tinha duas ou três páginas de entrevista com algum personagem, então aí comecei a aprender a ser entrevistadora e descobri minha vocação jornalística, em meio a um processo revolucionário como era o chileno. Era um momento apaixonante, além do fato de que a revista tinha a característica de por em palavras simples estudos de intelectuais de esquerda que não chegavam até o povo”.
“E, fora isso, colocávamos o microfone ao alcance do povo, ou seja, íamos até os cordões industriais. Quando tinha greve em uma mina de cobre, ou de salitre, nós estávamos ali”, afirmou, reforçando que: “A verdade é que aprendi muito disponibilizando o microfone”.
Sobre a linha que seguiam no semanário, era o da leitura crítica, inclusive com críticas ao governo de Allende, principalmente as que vinham do povo. “Nosso critério era que, na revista, as críticas que existissem em relação ao processo, que as fizessem as pessoas. Muitas vezes, os jornalistas fazem críticas, em um sentido, é muito fácil criticar. Intelectualmente alguém sempre encontra coisas que são imperfeitas, mas é diferente quando um intelectual critica de quando o povo te diga como está sentindo os erros do processo”.
Respeitado pelo governo e pelos setores populares e sindicais, o jornal também o era pela oposição, por trazer informação de qualidade em suas páginas. “Permitimos que o jornalismo sirva para alertar, para divulgar o que há de bom e também mostrar o mal, e permitir que se corrija o processo. Isso é o que me apaixonou.”
A “Via Chilena ao Socialismo”
“Eu digo que o Chile de Allende foi um precursor no século XX do socialismo no século XXI, porque Allende foi o primeiro que tratou, por uma via pacífica, de ir construindo a nova sociedade”, afirma Marta Harnecker.
“Parece-me muito interessante como Allende apresentou a necessidade de repensar o socialismo, se este se dava pela via pacífica. Dizia que tinha que ser um socialismo ‘com vinho tinto e empanadas’, duas coisas tipicamente chilenas. Ou seja, um socialismo que se enraizasse nas nossas tradições. Allende entendeu muito bem que para fazer este trânsito da institucionalidade herdada, você tinha que ter a maioria do povo a seu favor, e não sei se a esquerda entendeu isso.”
Em seu livro “Um mundo a Construir”, Marta retoma alguns pontos desta análise: “É preciso ter presente que no início da década de 70 no Chile, com o triunfo do presidente Salvador Allende, apoiado pela coalizão de esquerda Unidade Popular, começou a se desenvolver a primeira experiência mundial de mudança em direção ao socialismo, diferente à da União Soviética, já que se realizava pela via institucional, experiência que foi rapidamente derrotada por meio de um golpe militar três anos depois. Se nossa geração aprendeu algo dessa derrota, foi que se queríamos uma transformação pacífica na direção desta meta, teriamos que repensar o projeto socialista tal como se havia aplicado até então no mundo, e que, portanto, era necessário elaborar outro projeto mais adequado à realidade chilena e a via pacífica de construí-lo. Isso era o que Allende parecia intuir ao usar sua folclórica metáfora de ‘socialismo com vinho tinto e empanadas’, que apontava à construção de uma sociedade socialista democrática enraizada nas tradições nacional-populares.”
Outro grande líder com quem Marta também trabalhou foi o venezuelano Hugo Chávez, de quem foi assessora, e, assim, ela é capaz de traçar algumas das diferenças entre os dois governos: “Chávez dizia: ‘Minha via é a via pacífica, mas diferente de Allende, em que era uma via pacífica desarmada, a minha é uma via pacífica armada’, e dizia isto não porque o povo estivesse armado em milícias, mas porque ele contava com o apoio militar.”
O golpe militar
Das contradições que emergem no governo da Unidade Popular, e que levam ao golpe militar, é possível pontuar algumas, como explica Marta Harnecker: “Muitos esqueceram que se havia conquistado o governo e não o poder; que os poderes Legislativo e Judiciário estavam nas mãos das forças opositoras; e que o pilar fundamental do Estado burguês: o Exército, se mantinha intacto, protegido pelo chamado Estatuto de Garantias Constitucionais”.
Por mais positivos que fossem os avanços do Governo Allende, uma das análises críticas que se faz é que os setores populares perdem sua força de organização, e “aparecem como meros espectadores e setores de apoio do processo.”
“Os Comitês de Unidade Popular, que haviam tido um extraordinário auge durante o período pré-eleitoral, em sua maioria desaparecem logo depois do triunfo [eleitoral]. Os partidos dedicam todos os seus quadros às novas tarefas do governo, abandonando de forma significativa seu trabalho no movimento popular”, defende Marta em um texto de balanço. Ainda assim, em zonas mapuches, estes povos originários promoveram mobilizações para recuperar suas terras ancestrais.
Como antecedentes do golpe, Marta Harnecker enumerou seis eixos da contraofensiva da extrema-direita no Chile. O primeiro era a busca em dividir a coalizão Unidade Popular, entre os “democráticos” e os “marxistas”, e para isolar os comunistas.
O segundo era o controle dos meios de comunicação: “A oposição controlava 70% da imprensa escrita e 115 das 155 rádios que existiam no país.”
A defesa da propriedade privada era o terceiro eixo da extrema-direita, utilizando de “mecanismos legais e meios de pressão para atrasar a formação da área de propriedade social”, afirma Marta.
Um quarto ponto tem a ver com a questão militar, com uma linha anti-Unidade Popular no interior das Forças Armadas. “O ponto central dessa campanha foi a denúncia da existência de grupos armados em detrimento das únicas forças armadas que deveriam existir no país. Isso dificultava enormemente qualquer tentativa de armar o povo para defender o governo popular”, analisa.
A conquista dos setores médios para uma ação contra o governo foi o quinto elemento de atuação da extrema-direita.
“Mas o objetivo fundamental, e que permitiria conquistar vários dos outros, quase poderíamos dizer que por acréscimo, foi provocar o fracasso econômico do governo popular”, como a corrida bancária, o contrabando de dólares, a paralisação de algumas indústrias, bem como o bloqueio das modificações da “injusta estrutura tributária” no Parlamento.
Ao mesmo tempo, promoviam derrotas no Congresso negando “os recursos orçamentários para levar adiante os planos do governo de caráter social: distribuição de leite, planos de saúde, de moradia e obras públicas.”
“Cada vez mais setores sociais da direita e seus aliados foram participando da política: em panelaços, manifestações de rua, paralisações de transporte, greves nas minas de cobre”, e faltava uma unidade dentro das forças governistas.
Com a situação se agravando dia após dia, chega o 11 de setembro de 1973, data em que Allende anunciaria um plebiscito popular às 11 da manhã: “A essa hora, as balas reduziram ao silêncio o heroico e consequente mandatário chileno”.
*Fragmentos da entrevista com Marta Harnecker vieram, sob sua análise, de uma entrevista com a repórter Arleen Rodríguez, do programa radiofônico cubano “A la luz del recuerdo”; de seu livro “Um mundo a Construir”, lançado também em português pela Editora Expressão Popular; e o texto “Estudiar el pasado para construir el futuro”, de 2003.
Edição: Daniel Giovanaz
Fonte: Brasil de Fato
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