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MASSACRE DO CARANDIRU: 32 ANOS E A VIOLÊNCIA PERMANECE

MASSACRE DO CARANDIRU: A VIOLÊNCIA PERMANECE

Massacre do Carandiru: a perpetuação da violência no sistema penitenciário brasileiro

Os dados do sistema penitenciário brasileiro evidenciam que as políticas de aprisionamento potencializam cenários de violências, como o Massacre do Carandiru

Por Nathalia Souza Santos da Silva/Mídia Ninja

O dia 02 de outubro de 1992 é lembrado como um dos episódios mais violentos da história do Sistema Penitenciário Brasileiro, marcado pela atuação repugnante da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMSP), que assassinou, oficialmente, 111 pessoas presas na Casa de Detenção do Carandiru (“Carandiru”).

Esses episódios de extrema violência e morte de pessoas presas ainda são uma realidade nas unidades prisionais brasileiras e, de certo modo, expõem as graves violações de direitos humanos e as condições degradantes de aprisionamento perpetuadas pelo poder estatal.

O Massacre do Carandiru é uma das provas de que o encarceramento em massa gera fatalidades irreversíveis para toda a sociedade. Para além das mortes, são 111 famílias que sofreram tamanha violência e que, nesta data, são lembradas da ausência de seus entes queridos. Aqueles que sobreviveram ao Massacre, por sua vez, também sofrem com traumas profundos e danos irreparáveis à sua saúde mental.

O “Testemunho de um Oblato no Extinto Carandiru”, escrito pelo Pe. Chico (Roberto Francisco Reardon é Oblato de Maria Imaculada – O.M.I) e publicado em 2019, disserta sobre o sentimento das pessoas que continuaram encarceradas na Casa de Detenção em um contexto pós Massacre, para além de tratar da atuação longínqua da Pastoral Carcerária, que, naquele contexto, prestou solidariedade aos sobreviventes e escutou seus relatos, buscando cumprir a missão direcionada por Jesus: cuidar do próximo como a ti mesmo.

O Pe. Chico foi uma importante personalidade cristã que lutou contra o cárcere e realmente ouviu aqueles que eram silenciados. Os depoimentos que ouviu das pessoas presas revelam os episódios torturantes de violência vivenciados pelos sobreviventes: durante o massacre, as pessoas presas se despiram e ficaram esperando a invasão da PMSP em suas celas/alas para demonstrar aos policiais que não ofereciam riscos e que não estavam com armas brancas.

Além disso, devido às inúmeras violências e sons de tiros nos pavilhões da unidade, alguns sobreviventes se jogaram debaixo dos corpos de seus companheiros mortos para indicar que já estavam sem vida.

Os agentes da Pastoral que visitavam a Casa de Detenção encontraram 13 pessoas mortas no banheiro do Pavilhão 04. Seus corpos apresentavam perfurações de balas no tórax e tiros em suas cabeças, o que indica que eles já estavam rendidos quando foram mortos.

Os depoimentos ainda mencionam que, durante esse episódio de extrema tortura, alguns sobreviventes foram obrigados a carregar os corpos de outros presos mortos até o pátio da unidade. É diante desse cenário marcado por violências contra pessoas presas, as quais são torturadas diariamente, que se verifica a relevância do papel da Pastoral Carcerária no que tange às denúncias de tortura encaminhadas e à elaboração de relatórios de combate ao encarceramento em massa.

Os dados do sistema penitenciário brasileiro evidenciam que as políticas de aprisionamento potencializam cenários de violências, como o Massacre do Carandiru. Trata-se de um episódio que marcou a sociedade brasileira como uma das maiores arbitrariedades exercidas pela polícia militar, executando pessoas presas que não tinham a possibilidade de resistir frente à opressão e aos métodos de torturas que os acometeram.

Em uma análise sobre as estatísticas do sistema prisional brasileiro é possível observar que a presença da seletividade penal ainda é um fator que conecta o racismo ao encarceramento em massa no país. Deste modo, é fundamental pontuar a lição de Zaffaroni1, que evidencia como a seletividade penal atua:

“Diante da absurda suposição – não desejada por ninguém – de criminalizar reiteradamente toda a população, torna-se óbvio que o sistema penal está estruturalmente montado para que a legalidade processual não opere e, sim, para que exerça seu poder com altíssimo grau de arbitrariedade seletiva dirigida, naturalmente, aos setores vulneráveis. […] A seletividade estrutural do sistema penal – que só pode exercer seu poder regressivo legal em um número insignificante das hipóteses de intervenção planificadas – é a mais elementar demonstração da falsidade da legalidade processual proclamada pelo discurso jurídico-penal. Os órgãos executivos têm ‘espaço legal’ para exercer poder repressivo sobre qualquer habitante, mas operam quando e contra quem decidem” (ZAFFARONI , 1991, p. 27).

Segundo os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, o território brasileiro totaliza 846.021 pessoas privadas de liberdade e, se realizarmos um recorte sobre de raça e cor, obtemos a informação de que 69,1% das pessoas em condições de aprisionamento são negras. Além disso, é fulcral pontuar que a população negra2 também protagonizou uma das maiores taxas de mortalidade por intervenções policiais em 2023. De acordo com o anuário, a taxa de mortes de pessoas negras, se comparada com a de pessoas brancas, chega a ser 289% maior, o que explicita o racismo e a seletividade penal brasileira.

Ademais, o relatório “Vozes e dados da tortura em tempos de encarceramento em massa”, publicado em 2023 pela Pastoral Carcerária Nacional, revela as constantes violações de direitos de pessoas privadas de liberdade no cárcere brasileiro.

Um dado relevante é que, dos 223 casos registrados, 116 (52,02%) tratam-se de agressões físicas – a título de exemplo, é mencionado que as agressões consistem em socos, chutes, tiros e até mesmo pauladas em pessoas presas. Na prática, esse relatório revela as condições precárias de tratamento nas unidades prisionais do país e reforça a pauta que é evidenciada por essa pastoral: enquanto o estado brasileiro investir em políticas de encarceramento e intervenções policiais violentas, mais massacres estarão presentes em nossa sociedade.

Desde o Massacre do Carandiru, outros episódios cruéis e chacinas ocorreram em comunidades, assim como novos massacres acometeram unidades prisionais.

Em 2006, mais de 564 residentes das periferias de São Paulo foram executados entre 12 e 21 de maio; em 2015, em Fortaleza, uma força tarefa policial vitimou 11 pessoas nos bairros da Grande Messejana; nesse mesmo ano, 27 pessoas foram mortas na Grande São Paulo, durante as chacinas de Osasco e Barueri.

Em 2017, 55 pessoas foram mortas no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (COMPAJ), em Manaus; em 2019, mais de 62 pessoas foram mortas no Centro de Recuperação Regional de Altamira/PA; por fim, em 2023, a “Operação Verão” e a “Operação Escudo”, ambas ocorridas na Baixada Santista entre os meses de abril e julho, deixaram ao menos 84 pessoas mortas.

Após 32 anos do Massacre do Carandiru, identifica-se que a luta pela justiça e o respeito pela morte das vítimas ainda é um movimento que enfrenta obstáculos. O cenário de repugnante de violência que ocorreu na Casa de Detenção do Carandiru foi exaltado neste ano por policiais do Centro de Policiamento de Choque de SP, em um vídeo publicado na internet com falas de enaltecimento à conduta do Coronel Ubiratan Guimarães, que comandou a ação da Polícia Militar no Carandiru: 

“Hoje eu te apresento o 1º Batalhão, Aquele que acalmou a Casa de Detenção [Carandiru] 1992, logo pela manhã, o clima já era tenso A caveira já estava sorrindo para o detento. Lá só tinha lixo, a escória, na moral. Foi dado ‘pista quente’ para derrubar geral. Bomba, facada, tiro e granada. Corpos mutilados e cabeças arrancadas. O cenário é de guerra, tipo Vietnã. A minha continência, Coronel Ubiratan”.

Na prática, essa conduta revela ainda que o pensamento punitivista e valorização de uma das maiores violências protagonizadas no sistema penitenciário brasileiro persiste na base de formação dos policiais. A letra da música não só ridiculariza a morte das vítimas, mas é também reflexo da invisibilidade da dor de familiares.

Os policiais responsáveis pela operação violenta foram condenados por júri popular entre os anos de 2013 a 2014, com pena superior a 40 anos. Já uma condenação de 623 anos foi destinada ao Coronel Ubiratan que, em 2006, em um ato completamente atravessado de racismo institucional, foi absolvido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP).

Em dezembro de 2022, o antigo presidente do Brasil, o Sr. Jair Bolsonaro, concedeu indulto (Perdão) natalino através do decreto 11.302/2022, e destacamos a redação do art. 4º que diz:

Art. 6º Será concedido indulto natalino também aos agentes públicos que integram os órgãos de segurança pública de que trata o art. 144 da Constituição e que, no exercício da sua função ou em decorrência dela, tenham sido condenados, ainda que provisoriamente, por fato praticado há mais de trinta anos, contados da data de publicação deste Decreto, e não considerado hediondo no momento de sua prática.

Em vista disso, o indulto tornou-se um benefício aos 74 policiais militares responsáveis pela operação, uma vez que eram agentes públicos de segurança e as condutas praticadas tinham limite temporal de 30 anos. Nesse sentido, em agosto de 2024, havia uma ação judicial em andamento no TJ-SP que discutia a constitucionalidade do indulto natalino fornecido pelo ex- presidente Jair Bolsonaro que resultou na manutenção do indulto por entender que foi concedido conforme os parâmetros legais. Com a manutenção do indulto, todavia, a defesa dos policiais condenados podem solicitar ao poder judiciário que a pena determinada seja extinta.

Nesse ínterim, percebe-se a importância de recordar os familiares das pessoas que morreram sob custódia do Estado no Carandiru. Diante de um cenário de tamanha crueldade, são essas pessoas que sentem a dor da perda e revisitam o passado a cada julgamento dos que mataram seus entes queridos.

Cabe evidenciar que, segundo o relatório divulgado em setembro de 2022 pelo Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena da FGV Direito de SP, dos 75 processos de indenizações pleiteados pelos familiares das vítimas do Carandiru, apenas 25 familiares receberam algum tipo de indenização do Estado.

O relatório ainda menciona que o tempo médio de andamento da ação é de 22 anos e 6 meses. Na atualidade, esse estudo destaca que a batalha judicial enfrentada pelos familiares ainda é uma luta que resiste às inúmeras negligências perpetuadas pelo Estado Brasileiro.

Portanto, a luta pelo fim do encarceramento em massa e o combate às condições degradantes de aprisionamento é uma pauta de resistência ativa dessa Pastoral, que busca promover a manutenção da dignidade humana para aqueles que são invisibilizados pela sociedade, combater as políticas de encarceramento em massa e atuar contra a violência estatal em unidades prisionais brasileiras, visando sempre a construção de um mundo sem cárceres.

Escrito por Nathalia Souza Santos da Silva, Estagiária Jurídica da Pastoral Carcerária Nacional.

Revisado por Isadora Meier, Assistente Jurídica da Pastoral Carcerária Nacional.

  1. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991. ↩︎
  2. Considera-se população negra a junção de pretos e pardos segundo critérios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). ↩︎

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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