Meus tempos de criança nos seringais do Rio Muru

Meus tempos de criança nos seringais do Rio Muru

Meus tempos de criança nos seringais do Rio Muru

Febre e Promessa no Currimboque: Ainda na colocação Currimboque, promessa feita, dádiva recebida e sacrifício pago…

Num daqueles ‘dias de branco’ –  como costumavam dizer os seringueiros adultos – , saí para cortar minha estrada de seringa, São José ‘de cima’ (lembrem-se disso: toda estrada tem seu próprio nome) e no decorrer do , naquele dia, adquiri uma febre fortíssima.

Por Txai Antônio Macêdo

Ocorre que eu havia passado por baixo de um pé de Palmari e não vi a árvore, e por isso, ganhei aquela famigerada febre. Para aumentar minha má sorte, naquele dia caiu uma forte chuva, e eu ainda estava longe de casa. Tive que sobreviver toda aquela chuvarada com a febre que me atacava de forma quase intolerável. Cheguei na casa de meus pais usando uma ‘muleta’  improvisada feita com pau de caneleiro, e sem querer deixei minha mãe muito assustada.

Passado mais de um mês, minha mãe, senhora Carmina Caetano Barbosa, que era uma pessoa muito religiosa e sempre bem motivada pela fé cristã, diante da situação que ela me via ali, aleijado da perna direita, devido ao choque térmico ocasionado pela febre e a chuvarada que tomei na estrada de seringa, caiu de joelhos ao chão e pediu a Santa da Liberdade que intercedesse junto ao Criador pela cura da minha perna direita, que, ao que parece, já estava ‘encolhida’ há mais de 40 dias.

Ela prometeu para a santa que, se a minha perna voltasse a se movimentar como era antes, ela me mandaria a pé da colocação Currimboque  até o túmulo dessa jovem santificada para banhar minha perna na terra da sepultura dessa ‘santa’, que era uma moça já morta há muitos anos, e que havia sido ‘santificada’ pela população dos seringais.

Assim, quarenta dias depois, comecei a movimentar minha perna e todos os outros seringueiros que me viam não se cansavam de dizer: Olhe o menino! Ficou bom da perna dona Carmina, a senhora foi atendida.

O verão chegou, e uma caravana de romeiros vinda de toda bacia do Rio Muru se deslocava para o local onde se encontrava a sepultura da santa milagrosa. Minha mãe que, já havia ouvido falar muito bem da referida moça que se santificou, não perdeu tempo: Logo preparou uma farofa daquelas muito deliciosa e duradoura, colocou-a em um saco encauchado com látex de seringueira e me ordenou acompanhar os romeiros para pagar a sua promessa.

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Não discuti e nem pensei duas vezes: Coloquei a rede num saco. O saco numa estopa. Minha faquinha na bainha. A bainha no cinturão e fui caminhando por vinte e dois dias pelos varadouros da floresta, para cumprir a promessa feita por minha mãe, banhando-me na terra solta da sepultura da Santa. – Durante a caminhada junto à caravana de romeiros, compartilhei com eles momentos bons e momentos de sérias dificuldades, apresentadas ao longo dos varadouros, às vezes limpos ou, na maioria dos casos, com mata ‘serrada’.

Como a é rica, e ao mesmo tempo cheia de surpresas. Passamos por muitas colocações das bacias dos Rios Muru, Rio Envira e Rio Paraná do Ouro. Dessas recordo de algumas como: Morada Nova, Cius, Vai quem quer, Sobral, Mato Grosso, Tianguá, Chato, Alto do bode, Alto Bonito e Paraná do Ouro.

Recordo-me dessas localidades pela importância que cada local desses teve para nossa viagem, pois, eram locais onde buscávamos informações sobre os varadouros, recebíamos refeição caseira e gratuita, tomávamos água de fontes e igarapés tiradas de potes de cerâmica. Eram locais onde descansávamos à noite, para, no dia seguinte, darmos continuidade de nossa viagem.

Mas, teve uma vez que andamos um dia inteiro na floresta, sem água para beber, pois, todos os poucos e pequenos igarapés estavam secos, mas, ainda assim, todos nós estávamos determinados a continuar nossa caminhada passando muitas vezes por dentro de capoeiras de antigas malocas, antes pertencentes a grupos indígenas já exterminados pelas “correrias”, praticadas por seringalistas como o Pedro Biló na bacia do alto rio Envira, Paraná do Ouro, rio Humaitá, rio Muru, rio Tarauacá, rio Jordão, rio Iboiaçu, rio Tejo, Paraná do Machadinho e rio Breu.

Depois deste dia de sede, esforço altamente controlado, fomos pernoitar na casa de um dos filhos de Pedro Biló, de nome Francisco Biló. Este senhor era um dos filhos que se juntava a seu pai, como um dos grandes matadores de índios.

Na moradia de Francisco Biló tinha água boa e abundante. Os donos da casa não estavam presentes na noite que chegamos nesta colocação mas, a decisão unânime de nossa caravana foi acampar ali naquela noite. Eu, deitado na rede ficava pensando nas aflições vividas pelos grupos indígenas quando eram atacados pela “correria” de Pedro Biló, e nós estávamos exatamente na casa do filho dele. De tanto pensar nisso, o sono ainda estava distante, embora estivesse enfadado de caminhar.

Durante a noite, a sede do dia anterior começou a aparecer. Foi quando me levantei para ir até uma talha grande de cerâmica antiga, que ficava sobre um cepo localizado no cantinho da parede de paxiúba. Para minha tristeza terminei encostando a barriga na talha, que por sua vez tombou e esfarelou-se no terreiro da casa: Meu Deus! E agora? –  Eu, e os outros integrantes da caravana de romeiros ficamos muito preocupados com o acontecido, e todos se perguntavam: E agora? Quando o dono da casa chegar o que vai acontecer?

Antes da meia noite a família da casa chegou, e eu, tomando à frente de todos, me levantei da rede e expliquei para o dono da casa o que havia acontecido com a talha de cerâmica dele. Ele entendeu e, graças a Deus, nos perdoou sem promover qualquer alarde. Depois disso fomos dormir.

Eu, deitado na minha rede, ficava com minha cabecinha, de apenas onze anos, dando voltas e voltas no mundo da imaginação e das lembranças. Recordações das grandes histórias que me eram contadas pelo o seringueiro Rufino Coelho, vulgo Muru, um senhor que chegou à casa dos meus pais quando eu ia fazer meu primeiro aniversário e terminou ficando junto com nossa família para o resto da dele, vivendo muito anos junto a nós.

Muru dizia que até chegou a ser recrutado para participar de turmas de correrias, onde viu muitas desgraças praticadas contra os povos indígenas brabos (isolados), naquela época.

Entre estas histórias, Muru me contava sobre as “correrias” praticadas por um homem, se não me engano este era procedente do Maranhão, de nome Maximiano da Fonseca, que, e seu nefasto negócio, contava com as participações de chefes de correrias vindo do Peru, conhecidos pelos nomes de Dom Elias, Dom Abudy e Dom Eloy.

Segundo a história do Muru, Maximiano da Fonseca era um homem cheio de mistérios e poderes: Chegava numa casa de família com sessenta homens em sua turma, pedia água recebia e dava os sessenta copos d’água para seus companheiros, mas, o único que os donos da casa viam era ele.

Noutro ‘causo’ diziam que ele entrava sozinho numa maloca no meio da noite, cortava as cordas dos arcos e as molas de rifles em poder dos índios. Fazia tudo sem ser visto pelos índios, para, em seguida, com seus companheiros atacar essas malocas às cinco da manhã.

Nestes ataques, as índias novas eram pegas e amarradas para trazer e entregar aos patrões nos barracões. Tais presas eram depois vendidas pelos patrões aos seringueiros e certas delas eram presenteadas a outros patrões. Bom e, assim passei a noite revivendo tudo aquilo que me era contado antes pelos seringueiros.

Finalmente o sono me venceu.

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No dia seguinte a farofa de todos que integravam a caravana já estava no fim e, exatamente no entardecer deste dia, chegamos à sede do Seringal Liberdade, na margem esquerda do Rio Envira, de nome indígena Henê-Bariá ou Pixiã, na língua indígena Huni kuin.

É lá onde se localiza o túmulo da Santa Maria da Liberdade e naquela noite de nossa chegada, logo à tardinha, cumpri minha missão de ir até o túmulo e me banhar com a terra da sepultura da Santa, com a qual a minha mãe tinha feito a promessa. Em seguida, me banhei nas águas do Henê-Bariá e, depois desse banho, veio o chamado para a nossa caravana, para a refeição da noite.

No jantar, eu comi carne de carneiro pela primeira vez. Até então, eu achava que aquele animal não era para agente comer e não me sentia convidado pelo o apetite mas, finalmente, comi aquela carne na janta, até porque sentia necessidade de repor minhas energias dispensadas durante os primeiros onze dias de caminhada pela floresta. Outro motivo, além da , eu não podia fazer feio na casa alheia como, por exemplo, pedir outro tipo de comida que não fosse o prato oferecido pela família, que nos recebeu e nos abrigou para o jantar da família.

Depois do jantar começaram muitas conversas sobre essa santa, que era uma linda jovem nascida e crescida no seringal, onde foi assassinada no local onde fica sua capela. Contaram que o irmão de Maria tinha um amigo e queria que a jovem namorasse o referido rapaz, e que, depois de um tempo viesse casar-se. Só que Maria não tinha o mesmo propósito, e por isso, não aceitou a indicação feita por seu irmão, que ao se sentir contrariado diante de seu amigo, pegou uma arma e atirou na irmã, vinda a mesma a falecer.

Depois da morte da jovem, logo santificada, o seringal Liberdade passou a ser um local de muito destaque, tão importante que, até hoje todos os anos é muito freqüentado por diversos romeiros tanto do Acre quanto de fora do , que lá vão pagar suas promessas naquele local, e tem outros que vão ali para conhecer a história envolvendo aquele episódio.

Após pagar minha promessa voltei caminhando mais onze dias, junto com a mesma caravana que minha mãe havia me entregado. Chegando em casa minha querida mãe nos recebeu com uma mesa sortida de muitas comidas, todas produzidas com a devida qualidade da arte culinária de minha mãe e minhas irmãs.
Dou um salto na minha história, rompendo com a narrativa…

Talvez por conta desta importância, que, muitos anos depois, quando ocorreram os estudos de identificação e delimitação das terras indígenas Kulina do Rio Envira e Kulina do Igarapé do Pau, a faixa de terra que compreende a área do seringal Liberdade ficou fora dos limites das terras indígenas, respeitando o credo católico, o recanto e o livre arbítrio dos romeiros católicos que se apegam a jovem assassinada e santificada.

E, revoltados com o fato desta faixa de terra ter ficado fora dos limites dos territoriais indígena, alguns Kulina (Madija), chegaram a furar os olhos da imagem de massa da santa colocada na capela pela Igreja Católica em homenagem a santa santificada. Isto foi feito quando os Padres levaram o corpo da jovem Santa para Roma.

Em 2010, enquanto realizava levantamento junto aos povos indígenas do rio Envira, para suprir o Plano de Mitigação e Compensação nas terras indígenas da área de influência direta e indireta de abrangência dose impactos da BR-364,  parei nesse seringal e aproveitei para renovar meus votos junto a santa, que morreu pela liberdade de escolha. Nessa visita eu estava acompanhado eu Gessé-la, Maiane, Jucelino, Francisco Apurinã e Vanderlei o motorista de nosso barco fretado na cidade de Feijó no Acre.

Nessa viagem eu pude registrar outra versão da história, sobre a morte da jovem, contada pelo nosso barqueiro Vanderlei: “Eu era criança quando ouvia a minha mãe contar que um marreteiro (comerciante itinerante) de nome desconhecido parou no seringal atualmente denominado de Santa Maria da Liberdade, com objetivo de apresentar e comercializar seus produtos. Naquela oportunidade o marreteiro foi convidado pelo dono da casa, pai da jovem para almoçar ali. Como de costume, este comerciante estava de posse de um revólver de calibre 38, o qual deixou sobre a mesa da sala.

Nesse recinto estava a jovem de 16 anos, e a moça, sem noção do que poderia ocorrer, pegou a arma que estava carregada e brincando apontou para o rapaz, apertando o gatilho por várias vezes, sem que a arma realizasse qualquer disparo, Todavia, o jovem para quem Maria apontava a arma, era aquele que seu irmão queria que fosse seu namorado.

Naquele  momento, o irmão da jovem pegou a mesma arma e falou: – vou mostrar como se atira. -E acabou que dessa vez a arma disparou contra a adolescente, ocasionando o falecimento dela. Antes da sua morte, enquanto agonizava, pediu para não fazerem nada contra o rapaz, pois ele não havia feito aquilo com o propósito de atirar nela, era tudo brincadeira.

Após alguns dias de seu enterro, o local onde ela foi sepultada começou a inspirar cheiro de flores, e todos que por ali passavam percebiam que se tratava de um túmulo diferente. Aquela notícia chegou até ao conhecimento dos padres do município de Feijó, que vieram para fazer uma inspeção e se surpreenderam ao constatar que a jovem falecida, havia se santificado.

Deixo aqui essa história da jovem santificada, que me ajudou a fazer minha perna direita voltar a funcionar. O resto da história continuará no texto seguinte, ainda na colocação Currimboque.

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Antônio Batista de Macêdo, o Txai Macêdo, é sertanista da FUNAI e uma figura importantíssima para o indigenismo e para os povos indígenas no Acre. Juntamente figuras como com Txai Terri, Dedê Maia foi (e continua sendo) uma viva do que foram os anos de luta, desafios, vitórias, alegrias e tristezas em prol das questões indígenas nesse rincão da . Vivas a esse grande txai, cuja história merece ser contada e recontada por quem  admira e conhece o seu trabalho. (Jairo Lima: cronicasindigenistas

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MEUS TEMPOS DE CRIANÇA NOS SERINGAIS DO RIO MURU – parte 4:  As imagens utilizadas nesta matéria foram selecionadas por Jairo Lima e fazem  parte do acervo de fotos históricas dos seringais do Acre.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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