Mulheres se voluntariam para formar primeira brigada feminina do Pantanal
Em 2020 o fogo alcançou a Ilha do Baguari, onde só se chega de barco. Matriarca de uma das famílias da comunidade que fica no Pantanal sul-mato-grossense, a pescadora e artesã Rosely dos Santos Bastos se emociona ao lembrar o que viu.
“Muito triste. Dói até agora falar, lembrar o que aconteceu. De ver bichos, animais mortos. E pensar que se eles falassem que nem a gente, estariam pedindo socorro. E você, sem poder fazer nada.”
Por Mídia Ninja
Dentro do que é possível e motivadas por essa angústia causada pelo cenário desolador, é que sete mulheres se uniram para compor a primeira brigada feminina do Pantanal, a Brigada do Baguari. Elas tomaram para si a tarefa de compartilhar conhecimento com os vizinhos, atuar na prevenção do fogo e se precisar, no combate.
Ainda em 2020, foram contempladas pelo projeto de formação de brigadas da Organização Não Governamental, Ecoa – que atua com foco na preservação da biodiversidade pantaneira e também, das comunidades tradicionais e indígenas que vivem no Pantanal -, com apoio da WWF-Brasil. Este ano, a brigada também foi fortalecida com apoio do Fundo Casa Socioambiental, que auxiliou na compra de equipamentos de prevenção e combate ao fogo. O PrevFogo, do Ibama, ofereceu a formação.
Rosely, que por pouco não teve a casa tomada pelas chamas, se voluntariou. E junto foram as filhas Aline e Milena Bastos, além da irmã, Rosalina. Mas como Milena teve que trabalhar em Corumbá (MS) e as brigadas precisam ter no mínimo sete pessoas, Rosa acaba de assumir oficialmente o lugar da irmã, para garantir a formação. Completam o grupo as vizinhas Weiny, e outras duas irmãs, Neuzilene de Arruda e Lucila Ramires.
Milena, 24 anos, conta que o fogo chegou a 50 metros da casa da família. “A gente usou balde, jogou água. Era o único recurso que tínhamos. Hoje a gente sabe que só água não adianta. Precisamos de equipamentos para proteção e para combate ao fogo. Em algumas situações, a água pode até aumentar o fogo”. Os equipamentos que receberam do projeto da Ecoa ficam guardados na casa da mãe, porque ainda não há uma sede. “Hoje a gente tem capacidade. Não precisamos esperar”. À disposição da Brigada do Baguari estão roçadeiras, bombas hidráulicas, costais, sopradores, rádios comunicadores e dois barcos.
Mas agora as coisas estão diferentes, como relata a irmã Rosa. “Já fizemos o aceiro com antecedência. E se a gente soubesse fazer aceiro antes, acho q não teria chegado à nossa porta o fogo. Ainda não teve fogo por aqui, mas estamos em alerta”.
A mãe, Rosely, conta que no início de agosto caiu granizo no Pantanal, algo que nunca viu antes. “Com certeza que deve ser por conta de mudança climática. Nunca vi isso nos meus 46 anos de vida. E como resultado, os matinhos verdes queimaram. Então, o calor começou, tem vento forte e já podemos sentir o cheiro de fumaça de fogo nos arredores”.
Rosely conta que o grupo feminino visita as famílias e, quando recebe alguém em casa, sempre ressalta a importância do uso controlado do fogo.
“Não concordo quando dizem que o ribeirinho taca fogo. Imagine só no meu caso, eu vendo iscas. Eu nunca atearia fogo para que elas morressem, não é?”
Ela conta que os períodos de estiagem mais longos, muito perceptíveis por sua vivência, causam também a falta dos peixes. “Em 2020 e 2021 os corixos ficaram secos, este ano, melhorou um pouco. Quando a seca é grande, as baías secam, os corixos… e as cheias são importantes para que os peixes saiam daquele lugar”, explica.
E a brigada das sete mulheres têm apoiadoras importantes na comunidade, como a dona Nilza Arruda, de 61 anos. “Nós precisamos do que em 2020 a gente não tinha. Eu apoio minhas filhas e dou suporte à brigada para continuar crescendo. Eu nasci no Pantanal e aqui eu vivo, por isso tenho que ajudar a cuidar desse lugar que é nossa casa. Eu sou uma das que pediu pela criação da brigada”. Enquanto Lucila Ramires e Nilza de Arruda compõem a brigada feminina, o marido dela faz parte da brigada mista.
Ela conta que os impactos dos incêndios de 2020 são sentidos até hoje, e muitos bichos ainda procuram abrigo.
“O que eu vi foi sofrimento, choro e dor. A natureza perdeu. Vi passarinhos correndo do fogo, invadindo minha casa em busca de abrigo. Macacos gritando. Não quero mais ver aquilo”.
Dois anos depois, muitos macacos buscam sua casa em busca de alimento, porque muitas árvores que eram fonte de alimento para eles foram queimadas. “Nós também morremos um pouquinho. Eu vi bicho sendo queimado vivo. O pouquinho que sobrou de vida, juntamos os cacos e graças à Ecoa, formamos a brigada feminina que é para defender o que ainda restou”.
Segundo ela, na paisagem que tenta se regenerar, à primeira vista, algumas árvores estão verdes, mas não porque sobreviveram.
“As árvores grandes morreram todas. Estão verdes, mas são os cipós que subiram nas cascas das árvores. Então tenho medo que venha o fogo, porque esses cipós já vão estar secos, vão queimar e vão varrer o chão. A maioria das árvores e ervas que serviam de remédio, por exemplo, perdemos”. Para ela, uma grande perda, pois a medicina tradicional é parte da cultura ribeirinha.
“Espero que não pegue fogo, porque se isso acontecer, vai demorar uns dez anos para recuperar”. Ela disse que ficou revoltada ao ouvir a fala de Jair Bolsonaro, dizendo que ribeirinhos ateavam fogo no Pantanal. “Sempre vivi de isca, nunca ninguém na beira do rio tacou fogo. Não é isqueiro, é fazendeiro. A gente vive de isca, de peixe. A gente não quer desmatar, porque isso muda tudo. Peixe some, isca some. E aí vem gente jogar nas costas do ribeirinho”.
À reportagem, fez um apelo: “peça para apoiarem nossa brigada, fale muito do Pantanal e fale que o Pantanal ainda está doente”. A Ecoa tem acompanhado desde 2020, a situação dramática que muitas comunidades pantaneiras viveram. E de lá para cá, tem se dedicado à política de formação e fortalecimento de brigadas comunitárias, com recursos do Fundo Casa Socioambiental.
Com apoio de grupos especializados, como Corpo de Bombeiros e PrevFogo do Ibama, o projeto vai radiando para mais pessoas, quando os brigadistas trabalham em seus territórios, a dinâmica de mudança do comportamento de seus vizinhos, em relação ao uso do fogo e de prevenção. Como dizem muitos brigadistas, melhor que ficar de frente para o fogo, é fazer o aceiro.
O projeto já conta com nove brigadas formadas por comunidades tradicionais ribeirinhas, indígenas e composta por agricultores familiares, entre outros grupos em situação de vulnerabilidade, em cinco municípios da planície pantaneira no MS. As mulheres, têm sido essenciais. Quando não é o caso de integrarem brigada exclusivamente feminina, elas integram formações mistas, fazendo a diferença contra o tempo, quando equipes oficiais precisam percorrer distâncias enormes para socorrer moradores. De Corumbá até a Ilha do Baguari, por exemplo, são 3 horas de barco a motor.
Aline, brigadista voluntária que atua ao lado da mãe, Rosely, destaca que juntas elas protegem o lugar em que vivem. “E assim, preservamos nossa história”.
Confira documentário sobre o projeto de formação das brigadas comunitárias, produzido pela Ecoa: