NEGRINHO DO PASTOREIO: A LENDA
Era uma vez um estancieiro muito sovina, que nunca fazia num um favor aos vizinhos, nem acolhia os viajantes que passavam desavisados por suas terras nos campos abertos dos pampas.
Por Flora Bonatto
Apenas se importava com três coisas: seu filho, endemoninhado e insolente; seu cavalo baio; e um escravo negro bem menino, que ele só maltratava. Era chamado por Negrinho sem outro nome nem batismo e se dizia afilhado de Nossa Senhora.
Negrinho sempre galopava pela manhã com um cavalo baio, depois cuidava do chimarrão, aturando o patrãozinho.
Um dia, o estancieiro fez aposta com um vizinho: uma corrida de cavalos. O prêmio, mil onças de ouro. No dia marcado, o povo todo se juntou como que para uma festa. Feitas as apostas e acomodadas as torcidas, foi dada a largada. Quem montava o cavalo do estancieiro era o Negrinho, que esporeava, dando tudo para ganhar.
A corrida seguia com os cavalos emparelhados, pata a pata, cada qual comendo os campos ladeando um ao outro, o baio e o mouro. O povo vibrava pelo empate, e o Negrinho seguia na liça.
Com a chegada se aproximando, o baio empinou, dando a vantagem necessária para que o mouro o passasse.
O estancieiro se sentiu roubado, logrado mesmo. O juiz deu vitória para o mouro e obrigou o estancieiro a pagar a aposta, entregando em cima do poncho do adversário, estendido na grama, um saco com o ouro.
De volta a casa, o estanceiro amarrou o Negrinho numa árvore do pasto e o surrou de chicote. Foi embora dizendo que ele ficaria no campo 30 dias e devia cuidar dos cavalos. Assim foi, os cavalos pastando enquanto passavam os dias, com sol, vento, chuva, noite.
Vieram então os bichos e soltaram os cavalos, que correram pelos campos. O Negrinho acordou, mas não pôde fazer nada. O estancieiro deu-lhe outra surra e o obrigou a ir procurar os cavalos, ao cair da noite.
O Negrinho foi até o oratório da casa e, retirando uma vela acesa de Nossa Senhora, saiu pelos campos. Os pingos de cera que caíam se acendiam e iluminavam os caminhos.
Ele achou os cavalos e os reuniu. Deitou-se com eles no campo, cansado, e sonhou com sua madrinha, Nossa Senhora. Ela sorria, iluminada.
Iluminado foi ele pela luz do dia, que trouxe para o campo o filho do estancieiro, que tratou de assustar os cavalos, e eles fugiram pelos campos de novo. E o Negrinho perdeu o pastoreio.
O patrão surrou-o de chicote até cortar-lhe a pele. Jogou-o num formigueiro, atiçou as formigas, e foi embora.
Naquela noite o estancieiro sonhou com a corrida, seu filho, ele e o Negrinho e tudo o mais, parecendo tudo enorme, mas cabendo dentro do formigueiro. Os campos se cobriram de neblina por três dias e, nos três dias, o estancieiro tinha o mesmo sonho.
Assim que a cerração passou, o estancieiro mandou outros escravos procurarem seus cavalos, e foi até o formigueiro. Lá estava o menino, com os cavalos em volta, e o baio junto. Ao lado dele, a madrinha, Nossa Senhora, com seus véus de vento.
O estancieiro caiu de joelhos. Desse dia em diante sempre se via nas estradas uma tropa produzida pelo Negrinho do Pastoreio, montado no baio. E o povo pede pra ele achar coisas que perdeu. Acende uma vela e diz: “Foi por aí que eu perdi. Ó, Negrinho do Pastoreio, se você não achar, ninguém mais acha”.
Flora Bonatto – Educadora, em O Negro no Brasil, Coleção Caros Amigos, s/d.
NOTA DA AUTORA: A Lenda do Negrinho do Pastoreio é tradicional no Rio Grande do Sul. De origem popular, teve uma de suas primeiras versões, que ficou entre as mais famosas, publicada na imprensa local no ano de 1906 pelo contista regional Simões Lopes Neto. A lenda retrata as relações de autoritarismo e violência do senhor com seus escravos. Uma lenda desse tipo, de origem popular, com certeza retrata fatos verídicos no que se refere aos maus tratos dos quais os escravos eram vítimas, mas também simboliza uma resistência. Essa resistência ocorre por meio do divino e do fantástico, conforme o Negrinho, depois de morto, é recebido pela Nossa Senhora e imortalizado pela beatificação e pelo imaginário popular. Ou seja, seu corpo foi destruído, mas sua alma não será vencida, e permanece viva pela tradição popular.






