O balé dos meninos que ninguém vê
Eles, normalmente, vigiam carros ali pela Praia Grande. Moram na região, com as famílias, embolados nos cortiços seculares. No fim da tarde, antes de a bola de fogo afundar no mar, eles atravessam a avenida, penduram-se na muralha de contenção e se jogam num salto de liberdade.
Por Marcelo Abreu
É a diversão do fim do dia. A única a que têm direito. Os meninos da Praia Grande quase — ou nunca — atravessam a ponte que separa a ilha em duas cidades anos-luz uma da outra.
Uma feita de azulejos, lampiões e histórias.
A outra, de arranha-céus, equívocos mundos e valores tb equivocados e gentes, grande parte delas, que nunca viram os pequenos da Praia Grande voando para o mar.
E, na verdade, essas gentes não querem ver e nem se importam com os pequenos do Cais da Sagração. Eles são invisíveis.
Eu, quando estou na ilha, fico do outro lado da ponte. Na Praia da Ponta d’Areia. E, do outro lado, só o mar, à porta da minha Mamadi, me basta. Verdadeiramente. Os meus amigos sabem.
A vida real, a que quero viver, ouvir e me misturar vive nessa região onde estão esses pequenos que voam para o mar.
Os lampiões tb sabem. São os meus cúmplices.
Os pequenos que se jogam no mar, às barbas do Palácio dos Leões — símbolo de todo poder EFÊMERO (sim, e todos eles passam) — só querem ser felizes.
À maneira deles, fazem o que podem.
Os pequenos do Cais da Sagração, em cada salto, provam que a vida é feita de resistência brutal.
Eles certamente nunca leram ou ouviram falar do mineirinho Guimarães Rosa. Mas aprenderam na pele que ‘o que a vida quer da gente é coragem”.
Seu Rosa era timidamente sábio.
Eles estavam certos.
Marcelo Abreu – Jornalista. Cronista da vida humana de todo dia. Sempre emocionante!