O Cego Aderaldo: “Respeite minha viola!”
Estava eu num recanto/Tentando ir pelas bordas
Por Aderaldo Luciano
Estava eu num recanto,
Tentando ir pelas bordas.
Gritou-me o Cego Aderaldo:
“Respeite minha viola!
No cadafalso das cordas!
“E, em se escapando de um,
Cairá noutro, sem volta!
“Que é o canto afiado,
No mesmo tom que se toca!
“Houve um poeta gasguito,
Berrando de porta em porta!
“Ofendendo a poesia,
Soltando suas lorotas!
“O aço tinia um tom,
E ele, de boca torta
“Quebrava os nossos ouvidos
Com sua garganta exposta
“Fazendo até Jesus Cristo
Berrar do alto do Gólgota:
“— Serás amaldiçoado,
Chamado de idiota!
“Por isso, nobre poeta,
Não fira minha Viola!”
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Fonte: Facebook
Aderaldo Ferreira de Araújo, o Cego Aderaldo, nasceu no dia 24 de junho de 1878 na cidade do Crato — CE. Logo após seu nascimento mudou-se para Quixadá, no mesmo estado. Aos cinco anos começou a trabalhar, pois seu pai adoeceu e não conseguia sustentar a família. Tomou conta dos pais sozinho.
Quinze dias depois que seu pai morreu (25 de março de 1896), quando tinha 18 anos e trabalhava como maquinista na Estrada de Ferro de Baturité, sua visão se foi depois de uma forte dor nos olhos. Pobre, cego e com poucos a quem recorrer, teve um sonho em verso certa vez, ocasião em que descobriu seu dom para cantar e improvisar. Ganhou uma viola a qual aprendeu a tocar. Mais tarde começou a tocar rabeca.
Algum tempo depois, quando tudo parecia estar voltando à estabilidade, sua mãe morre. Sozinho começou a andar pelo sertão cantando e recebendo por isso. Percorreu todo o Ceará, partes do Piauí e Pernambuco. Com o tempo sua fama foi aumentando. Em 1914 se deu a famosa peleja com Zé Pretinho (maior cantador do Piauí). Depois disso voltou para Quixadá mas, com a seca de 1915, resolveu tentar a vida no Pará.
Voltou para Quixadá por volta de 1920 e só saiu dali em 1923, quando resolveu conhecer o Padre Cícero. Rumou para Juazeiro onde o próprio Padre Cícero veio receber o trovador que já tinha fama. Algum tempo depois foi a vez de cantar para Lampião, que satisfez seu pedido — feito em versos — de ter um revólver do cangaceiro.
Tentando mudar o estilo de vida de cantador, em 1931, comprou um gramofone e alguns discos que usava para divertir o povo do sertão apresentando aquilo que ainda era novidade mesmo na capital. Conseguiu o que queria, mas o povo ainda o queria escutar. Logo depois, em 1933, teve a idéia de apresentar vídeos.
Que também deu certo, mas não o realizava tanto. Resolveu se estabelecer em Fortaleza em 1942, onde veio a abrir uma bodega na Rua da Bomba, No. 2. Infelizmente o seu traquejo de trovador não servia para o comércio e depois de algum tempo fechou a bodega com um prejuízo considerável.
Desde 1945, então com 67 anos, Cego Aderaldo parou de aceitar desafios. Mas também, já tinha rodado o sertão inúmeras vezes, conseguira ser reconhecido em todo lugar, cantara pra muitas pessoas, inclusive muitas importantes, tivera pelejas com os maiores cantadores. E, na medida em que a serenidade, que só o tempo trás ao homem, começou a dificultar as disputas de peleja, ele resolveu passar a cantar apenas para entreter a alma.
Cego Aderaldo nunca se casou e diz nunca ter tido vontade, mas costumava ter uma vida de chefe de família pois criou 24 meninos.
Texto extraído do livro “Eu sou o Cego Aderaldo”, prefácio de Rachel de Queiroz, Maltese Editora — São Paulo, 1994.
Fonte: rabeca.org