O Cerrado antes de Cristo

O Cerrado antes de Cristo

O Cerrado antes de Cristo…

Dez mil anos antes de Jesus Cristo nascer, ou nove mil e quatrocentos anos antes de Maomé começar a pregar o Islão pelas terras da Arábia,  ou onze mil e quinhentos anos antes de Colombo descobrir a América e Cabral chegar até as costas do que hoje é o , o Cerrado já era ocupado por nossos ancestrais indígenas, que caçavam nos intermináveis campos que havia, peregrinavam pelas margens dos caudalosos rios e, nos períodos noturnos e nas estações das chuvas, acomodavam-se nas cavernas e nos abrigos rochosos que ainda existem no local…

Por Altair Sales Barbosa

Nossos ancestrais mais antigos costumavam nos contar que os ancestrais dos seus ancestrais, muito mais velhos, diziam que nosso povo se autodenominava Andarilhos da Claridade, ou Peregrinos do Alvorecer. Contam que quando chegaram por aqui existia muita neve nas longínquas terras do norte. Era o fenômeno que os atuais denominam glaciação. 

Segundo os cálculos, referendados pelos estudos desenvolvidos nas academias, esses nossos ancestrais chegaram aqui por volta de doze mil anos antes dos tempos atuais. Ainda, segundo a oralidade que ficou na dos mais antigos, o lugar era tão bonito que se assemelhava a um paraíso; por isso, foi denominado Jardim das Plantas Tortas.

Contam também os mais velhos, que ouviram dos mais antigos, que, naquele tempo, muitas paisagens que hoje caracterizam o que denominamos de continente americano, e América do Sul em particular, não existia da forma como se nos apresenta atualmente.

A ciência hoje nos demonstra que o estava vivendo o final da glaciação Pleistocênica. Havia muita turbulência, as correntes oceânicas possuíam outros limites de abrangência, que refletiam de forma decisiva nas correntes atmosféricas que, aos poucos, foram modelando as paisagens continentais, distribuindo modelos climáticos pelos cantos do continente, consolidando alguns ambientes e modificando drasticamente outros. 

Era a aurora de uma nova época geológica, conhecida atualmente como Holoceno. O Planeta estava se aquecendo, em relação ao Pleistoceno. As geleiras da Groenlândia despencavam em blocos sobre o mar ou provocavam imensas erosões no interior dos continentes, pelas correntes das águas derretidas. O nível do mar estava subindo e tomando lentamente as partes expostas das áreas que hoje constituem uma parcela da plataforma continental. 

A lenta subida do nível das águas oceânicas trazia como uma das consequências o represamento dos cursos d’água interiores. Com isso, a mecânica dos rios foi mudando, transformando os cursos d’água para menos velozes e mais largos, brindando oportunidades para a formação de planícies de inundação e lagoas laterais. 

A temperatura era mais baixa que os padrões atuais e os ventos de junho e julho provocavam as friagens nos vales enfurnados, um fenômeno tão forte que trazia muitas mudanças de comportamento da fauna nativa.

Por falar em fauna nativa, naquela época ainda existiam nos chapadões centrais da América do Sul os elefantes, conhecidos como Haplomastodon, as preguiças gigantes, conhecidas como Eremotherium, tatus gigantes, conhecidos como Gliptodontes e tantos outros gigantes que compunham a megafauna da América do Sul.

Perseguindo esses havia um grande predador, oriundo da América do Norte, conhecido pelo nome popular de Tigre-Dentes-de-Sabre, grande felino do gênero Smilodon. Ao lado desses animais, uma fauna variada de médio e pequeno porte partilhava seus nichos e . Alguns desses animais conseguiram sobreviver até os dias atuais. 

O Cerrado, com os seus diversos ambientes, também já existia em toda sua plenitude e servia de acolhida, como uma manjedoura de palha, para toda de fauna, desde os mamíferos até os pequenos insetos polinizadores. Assim, cremos que foi este o cenário que recebeu nossos primordiais ancestrais.

Segundo as histórias contadas por nosso povo, no início tratava-se de um grupo pequeno, composto de quatro a cinco famílias nucleares, tendo ao todo dezoito a vinte pessoas, incluindo as crianças. Pelo que conhecemos de grupos caçadores e coletores, essa população chegou ao alvorecer, certamente veio verediando pelo alcantilado de alguma serra, atraídos pelo aroma adocicado dos cajuís. 

A época corresponderia, no calendário atual, ao que deveria ser final de setembro. Quando a luminosidade do sol descortinou um longínquo horizonte, a visão de uma interminável campinarana deve ter extasiado todo o grupo.

À medida que o clarear se intensificava, as gotículas de orvalho nas folhas dos capins nativos imitavam o faiscar de diamantes brutos no fundo da bateia.

O sol escalava rápido aquele céu azulado e uma brisa temperada, tal qual um manto de algodão, cobria de calor aqueles corpos maquiados com cinzas. Enquanto o dia avançava, aquela gente pôde enxergar um pequeno córrego de águas limpas; ao longe, se descortinavam as brumas brancas de uma pequena cachoeira, bem próximo a uma lagoa e, mais distante, um rio de águas correntes

parecia indicar que ainda existiam caminhos.

 A claridade foi-se evidenciando e, à medida que o fato se concretizava, animais de hábitos herbívoros se aglomeravam para deliciarem o gosto meio adocicado dos brotos novos das gramíneas que surgiam como um tapete esverdeado no solo escuro, ainda chamuscado pela última queimada.

Ali também estavam animais insetívoros que se banqueteavam ao redor dos cupinzeiros. Ao largo, na espreita, estavam camuflados os carnívoros, esperando um vacilo da presa predileta.

Nossos ancestrais devem ter ficado deslumbrados diante de tal abundância. Ao estenderem os olhares para mais adiante, avistaram a testa esbranquiçada de um paredão de arenito. A intuição os conduziu ao local.

Ali, encontraram vários abrigos naturais e, nos taludes destes, sempre havia uma mina d’água. Talvez o sonho do Paraíso estivesse naquele momento se realizando. A tarde trouxe uma revoada de mariposas e tanajuras, para a festa de muitas aves.

Nossos ancestrais acamparam no abrigo, providenciaram uma fogueira, reconheceram melhor o ambiente, escolheram locais mais protegidos para as crianças e se distribuíram por locais, conforme suas conveniências.

Ali permaneceram por séculos, como narram nossas histórias, hoje comprovadas pela academia.

Nos campos, havia abundância de caça, ora mais, ora menos concentrada, de acordo com a época do ano. Nos ribeirões e nas lagoas, muitos peixes. Nas vastidões dos campos, cerrados e cerradões havia, em cada época específica, uma variedade de frutos comestíveis.

Também existia uma profusão de , sem ferrão, que recheavam as cavidades dos paredões das rochas, das árvores ou do solo com seus deliciosos potes de mel.

Assim, esses ancestrais pioneiros tinham à sua disposição proteínas animais e vitaminas diversas, oriundas dos variados frutos e açúcares, provenientes da coleta do mel silvestre. Sua dieta ainda era complementada pela cata de ovos e pelo consumo de alguns insetos ou de suas larvas.

A fertilidade da sobrevivência era complementada com espécies lenhosas para as fogueiras e com uma variedade de matéria prima mineral, que utilizavam para fabricarem instrumentos.

Os antigos contam que o ambiente, embora apresentasse temperaturas um pouco mais baixas que as dos padrões atuais, não se caracterizava por excessos, nem frio, nem calor muito intensos, a não ser em poucos dias do ano.

As chuvas se distribuíam dentro dos parâmetros atuais. Contam também que, quando se juntava muita gente, várias famílias procuravam outras terras, muitas não se reencontravam mais… Ficavam só lembranças. Talvez tenha sido por isso que outras línguas apareceram. Longo tempo de separação. 

Assim era no princípio!

Os antigos ainda contam que, depois de muito tempo, alguns dos nossos irmãos se mudaram para terras arroxeadas e lá construíram ocas e plantaram, dentre outras coisas, feijão, mandioca, milho, batata doce, inhame, mangarito, taioba, abóbora e muitas outras variedades.

De acordo com a história contada pelos antigos, era muita fartura, e a felicidade só aumentou entre nosso povo. Havia muitos encontros para incontáveis festas.

Até que, num determinado dia, vários homens diferentes chegaram até onde estavam esses nossos ancestrais. Contam também esses velhos que quando chegaram foram bem recebidos, nosso povo os acolheu com cordialidade, embora não entendessem por que alguns, de pele escura, estivessem amarrados e, de vez em quando, eram chicoteados. Contam que o tempo foi passando e aqueles homens estranhos se viraram ferozmente contra o nosso povo.

Pilharam as roças, violentaram as mulheres, e nossos irmãos foram morrendo de doenças desconhecidas, muitos foram amarrados em cangas de aroeira. Os que tiveram sorte fugiram para locais distantes e isolados.

Nossos ancestrais mais antigos dizem que ouviram de seus ancestrais que esses homens estranhos levaram muitos dos nossos irmãos, mas que não sabem para que lugar. Ainda contam que ouviram dizer que sempre chegavam mais homens estranhos, que primeiro escavavam os rios, depois traziam animais estranhos que viviam em cercados, e que depois construíram igrejas para um novo tipo de deus, construíram arraiais, que foram virando , cada vez mais ricas, com comércios e gentes que eram conhecidas por vários sobrenomes, alguns desses, eram pomposos, viviam nas riquezas e parece que tinham mais poderes que outros. Não entendemos muito disso, mas dizem que era assim…

Hoje nossos irmãos vivem em reservas, e outros peregrinam sem rumo nos recônditos mais escondidos desta terra. Os descendentes daqueles homens estranhos construíram seus mundos onde eram as nossas terras e ainda são valorizados de acordo com seus pomposos sobrenomes.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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