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O DIA EM QUE ME APAIXONEI POR LULA

O DIA EM QUE ME APAIXONEI POR LULA

O dia em que me apaixonei por Lula

Lula entrou no auditório onde se realizaria o evento destinado aos países do Mercosul e ocupou a cadeira central da mesa de convidados. Subi também, com minha carga de responsabilidade e me sentei ao lado dele: “Sou sua intérprete”

Por Lucilene Machado/Le Monde Diplomatique

lulaFoto: Mídia Ninja

Não fomos apresentados, um ao outro, como é de praxe nas convenções sociais. Eu sabia que devia encontrá-lo naquela hora e local, mas quando cheguei não consegui me aproximar. Braços, vozes, objetos indigenistas, cores, músicas… levantavam-se diante de mim como uma parede. Sequer eu conseguia vê-lo. Pessoas que vieram dos rincões úmidos do Pantanal queriam agradecer, não um agradecimento coletivo, queriam agradecer algo particular, queriam falar olhando nos olhos, revelar em palavras a felicidade-íntima-oculta para que seu interlocutor fosse o guardião delas.  Eu também queria manejar palavras, queria trocar três ou quatro delas, com ele, antes do compromisso oficial, mas foi impossível. Os seguranças tentavam, a todo custo, persuadir o povo e ele tentava assegurar o contrário, também queria olhar nos olhos do povo, precisava daquela energia de toques e  sorrisos para não desaprender a poética da indigência. Lembrei-me de “Pão e vinho” de Hölderlin: “para que poetas em tempo de indigência?” Mas meu interlocutor sabia (e sabe) que há fome de toda natureza: material, intelectual, afetiva, ética.

Por um momento, quase consegui acercar-me, mas afastar aquelas pessoas era evocar a miséria em seu modo mais absoluto. Ali estava a indigência negra, indígena, pobre, ribeirinha, entre outras, conscientes de suas penúrias. Porque a pior de todas as penúrias é sequer chegar a se dar conta dela. E para esses brasileiros se darem conta disso, foi necessário amor, aquele amor do qual fala Camões: “Sabei, pois, que segundo o amor tiverdes / Tereis o entendimento dos meus versos”. Nem tudo são relatos, discursos, retórica, é preciso amor para ensinar e aprender. Qualquer leitor que tenha se debruçado sobre a obra de Heidegger compreende essa realidade desumanizada vista como “a crise da vida e do espírito” que tem como manifestação a massificação do homem e sua mediocridade. Heidegger fala da poesia utilizada como arma para combater a indigência da modernidade e ali estava um homem realizando sua poética de palavras e gestos, um homem exercitando a resistência ao capitalismo das palavras, conscientizando as pessoas da violação da nossa liberdade pela mão invisível do mediático. A poesia está aquém, além e acima. É possível que não haja mudança sem uma poética de mudança, e não haja revolução sem uma poética de revolução.

Lula entrou no auditório onde se realizaria o evento destinado aos países do Mercosul e ocupou a cadeira central da mesa de convidados. Subi também, com minha carga de responsabilidade e me sentei ao lado dele: “Sou sua intérprete”. “Muito prazer, querida, não tivemos tempo de conversar e eu já estava achando que você não fosse aparecer”. “Não quis interferir no seu contato com o povo.” “Fez bem, querida”. Nesse pequeno diálogo descobri que o homem com quem eu iria trabalhar, nas próximas horas, era um cavalheiro no sentido real da palavra. Doravante, éramos cúmplices. O discurso ouvido, quanto o proferido, estaria atravessado pela minha voz. Eu era, naquele momento, a mediadora das palavras e seus significados. “Eu sei um pouco de espanhol, sei, por exemplo, o que é ‘carreteira’”. Eu sorri e me atrevi a dizer: “é uma palavra estratégica”. “Logística, eu diria.” “Mas eu terei de traduzir tudo”. “Por favor, querida”. A partir daí, não pudemos desgrudar os olhares e ríamos cada vez que um conferencista proferia a palavra “carretera”. Quando o senador chileno derrapou na informação, nossos olhos manifestaram estranhamento. Mas repeti com a mesma agudez, ele riu do meu esforço. Com olhos, também me perguntou: nervosa? E com os olhos respondi: não, estou muito à vontade.

lulalivreImagem: Reprodução/Le Monde Diplomatique

Mas, na hora de seu discurso, feito de improviso, eu tremi. Já ministrei aulas de retórica, conheço os recursos e os elementos de construção que podem ser explorados. Sei dos perigos que se incorre. Conheço de dialética e contiguidade. Sei que se aprofundar no discurso exige muita digressão, abertura de parágrafos, e o efeito de romper sua continuidade para reflexões pode ser fatal. Gelei várias vezes, pensando que ele não iria amarrar os fios soltos deixados pelo caminho.  Ele teria de voltar para “carretera” principal, do ponto de onde partiu e isso exige muita habilidade. Pois ele voltou e para quebrar minha tensão, deu um jeito de inserir a “carretera” no discurso. Eu ri por dentro, por fora me contive por força do trabalho. No final, eu o felicitei e agradeci a aula que deu sobre construção de discurso. Não sei se por educação, ou por necessidade, convidou-me para o jantar com autoridades da América do Sul. Eu até tentei acompanhá-lo, mas outra vez, cedi meu passe para a poética da multidão. Voltei para casa encantada e pensando na pergunta de Heidegger “Para que poetas em tempo indigente?” Respondo com Guimarães Rosa: “Para  que  o  homem,  através  da   percepção  das  pequeninas coisas se  re-conecte  com  o Sagrado  e volte a  habitar um  mundo  encantado”. A palavra está pervertida pelos interesses, pela tecnocracia, pelo império do capitalismo. A grande revolução a se fazer é subverter o discurso instituído e recuperar a força mágica da palavra, como faz Lula. Porque a poesia é a linguagem e só por ela se pode conquistar a beleza perdida no meio do caos instalado.

Agora, com o ex-presidente encarcerado, a palavra carretera, muito simples, mas com elevada carga semântica, abre espaço na paisagem urbana e nos oferece impecáveis leituras, os caminhos seguirão avançando, seja como for. Nada detém as ideias, sobretudo se acompanhada com essa força motriz de amar que ele inspira. Hoje, nossa alma roda só por essas gretas que a tristeza abriu. Mas amanhã, nossas almas poderão se juntar por uma carretera que se abrirá pelas veias desta América humilhada e nos levará até outro destino com menos dor e mais poesia.

Lucilene Machado é doutora em Teoria Literária e professora adjunta na UFMS.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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