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‘O dia que te conheci’ e a beleza de causalidade

‘O dia que te conheci’ e a beleza de causalidade

Filme do cineasta mineiro André Novais Oliveira coleciona prêmios nos principais festivais de cinema brasileiros.

Por Ben Hur Nogueira/Cine Ninja

André Novais Oliveira é um dos maiores nomes de sua vanguarda cinematográfica, de sua geração ele é possivelmente o cineasta que mais explora o espaço onde a estória se passa e um dos que mais sabe manejar precisamente o tempo a seu favor.

Em Temporada por exemplo, sua película lançada originalmente em 2018, ele nos permite entrar na vida da personagem principal vivida por Grace Passô de modo que estejamos tão inconscientes em termos da localização quanto a própria personagem, mas conforme o filme avança, temos uma expansão da sapiência da própria personagem que passa ter uma independência pessoal, o que é fundamental para o clímax do filme e isso nos dá um ar mais de certeza sobre a famigerada Jornada do herói, onde temos um personagem vivenciando uma miríade de acontecimentos que fazem-o passar por um amadurecimento pessoal.

Seu último filme “O dia que te conheci”, explora ainda mais todos seus atributos profissionais, sejam estes relativos ao timing ou ao espaço que os personagens atuam. É uma película que explora a casualidade e as coisas simplórias da vida, um filme que assim como os seus trabalhos pretéritos dão aos personagens um ambiente que automaticamente vira algo familiar para a audiência. Aliás, a familiaridade dos seus filmes usualmente concerne a uma facilidade de transmitir para a audiência, o quão comparável os eventos que ocorrem no filme serão para as coisas da vida de quem assistir, O dia que te conheci explora perfeitamente que estes eventos são mais comuns do que se imagina e que podemos nos ver em cada personagem de um jeito ou de outro, é uma película sobre o tempo mas também sobre a causalidade que torna o tempo seu maior aliado, casualidade esta que tem uma beleza imensurável.

O filme começa com um plano-abertura de uma estante de livros tocando “Solto” de Djonga. Assim como os eventos posteriores do filme, temos um close-up que solidifica a cena como se fosse um evento estagnado ao mesmo tempo que caótico, algo que remete muito a rotina de Zeca, personagem vivido por Renato Novaes, um personagem que lida com a depressão, tem dificuldades de acordar cedo e constantemente devido a este problema chega atrasado na biblioteca onde trabalha. Temendo ter eventualidades consequentes em termos do seu emprego, Zeca literalmente implora seu companheiro de quarto para acordar ele cedo, já que ele tem dificuldades de acordar cedo devido as medicações que toma. Contudo, no dia seguinte, mesmo com esforços, Zeca não consegue acordar cedo e mais uma vez corre contra o tempo para ir pra escola em uma sequência que inclui seu ônibus sendo quebrado, ele indo comprar pastel enquanto o ônibus é consertado e ele correndo contra o tempo para chegar a tempo no ônibus antes que perca o ônibus. Só nestas cenas vemos como a causalidade favorece a trama da estória em si, temos vários close-ups por exemplo que exploram o ambiente, coisa que vimos em Temporada e em seu primeiro longa “Ela volta na quinta”, mas diferente dos dois projetos anteriores, o diretor usa de um ambiente privadamente particular de cada persona, onde vemos constantemente o que cada personagem faz e como isso afeta o ambiente apropriadamente dando à audiência um olhar mais sensível pra cada personagem que tem uma passagem ainda que prévia.

Ao chegar na escola Zeca é informado que foi demitido devido sua rotina anti-profissional de constantemente chegar atrasado. A notícia é dada por Luisa, personagem vivida por Grace Passô, que lhe oferece uma carona para sua casa como forma de clemência, dando eventualmente, início à um momento único em que ambos personagens compartilham suas experiências pessoais, dores, traumas e vivências dentro do carro de Luisa.

A utilização dos planos dentro do carro dá um foco maior na conversa dos personagens fazendo-nos esquecer do mundo afora, mundo este que ambos lidam de maneira solitária.

“O dia que te conheci” é um filme sobre solidão e compreensão, o tempo em que o filme se passa, um dia literalmente, não oferece uma paixão espontânea como ocorre em “Before sunrise” de Richard Linklater, mas uma paixão que surge através da causalidade e de como os personagens passam a notar que a presença de um ao outro faz com a solidão vivida por Zeca seja algo deixada de lado.

A película mostra como um ato simplório de Zeca atrapalha sua rotina pessoal e o impede de acordar cedo, daí temos não obstante, em um período curto de tempo, uma estória que abraça a casualidade e enaltece a importância dos pequenos momentos do dia-a-dia, momentos casuais que às vezes nos premiam com o amor.

Manter um diálogo no cinema não é fácil e André faz isso com maestria pois sabe bem quando precisamos ouvir e quando precisamos observar. Um exemplo disso é como o diálogo no carro é mantido tendo referências da vida pessoal de Zeca e de Lucia, com pequenos detalhes sobre ambos até que um momento tudo é amplificado tornando a naturalidade da química de ambos em algo mais lúdico.

O dia que te conheci é uma película sobre o amor construído através de eventualidades simplórias e não sobre grandes demonstrações. Aqui, o amor é abraçado como um subterfúgio de cada personagem que percebe a importância que cada um tem através de mínimos detalhes individuais que nos são ofertados. O amor torna-se um sentimento que é mostrado e não falado, o que torna a individualidade mais realista e mais sensível. “O dia que te conheci” é um filme sensível e natural, algo que precisamos com urgência no cinema brasileiro hodierno.

Fonte: Mídia Ninja. Foto de capa: Divulgação.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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