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O recorde de fogo na Amazônia

O recorde de fogo na Amazônia

A Amazônia resulta de uma combinação rara e maravilhosa de luz, água e floresta. O centro desse organismo harmônico, que nos encanta e fascina por sua unidade na diversidade, graças a essa tríade máxima da natureza, é a floresta. Mesmo sem uma formação técnica ou acadêmica a respeito, quem consegue certa intimidade com a região chega inevitavelmente a essa constatação.

Por Lúcio Flávio Pinto

Pode ser ao andar pelo meio da mata, ouvindo seus sons, seus silêncios, percebendo a relação da copa com o chão colmatado, acompanhando a movimentação da fauna. Pode ser também através do trauma do incêndio, quando o homem o desencadeia (e, mais recentemente, pela combustão natural, que a antropia inocula na natureza).

Pode ser ainda, depois desse aprendizado in situ, nas cidades, ao detectar o desperdício de madeira. Uma prancha serve de tapume precário para uma obra levantada com elementos que demandaram muito menos energia, menos tempo, menos natureza. E depois é jogada fora, inservível, sem valor. Quantos animais essa árvore de lenho branco não podia continuar a abrigar? Quanta água não lançaria à atmosfera? Quantos nutrientes não depositaria no solo? Quantos processos biológicos não ajudaria a compor?

Sou um homem da Amazônia. Logo, sou um produto da floresta. Como a floresta está desaparecendo, meu habitat se reduz a cada ano, evolando-se em fumaça tóxica, e minha razão de ser se corrói, aderna, vira tumba. Ao defender a floresta, defendo minha vida e a dos que vieram ao mundo no ambiente que nos dá sentido e valor. Por isso, meu jornalismo ocupa um lugar muito próprio.

Meu nicho me chega quase por gravidade, por derivação da ausência alheia. Não preciso concorrer, nem é necessário que eu me preocupe em chegar primeiro. Meu lugar me espera. Não por eu ser um predestinado: é porque outros não querem ocupar esse lugar. A grande imprensa, por exemplo. Ou meus colegas que deixaram de seguir a rota natural a ser trilhada por quem quer realmente conhecer a Amazônia – e defendê-la dos seus predadores, aqueles que arrancam suas enormes e frágeis árvores para transformá-las em tapumes da construção civil, subproduto do lixo do labor humano.

Reproduzo parte do texto inicial publicado na edição 21 do meu Jornal Pessoal, da 1ª quinzena de julho de 1988, porque ela exemplifica essas considerações. O JP (que chegou ao fim em dezembro de 2019, depois de 32 anos de circulação), foi o único que deu a essa assustadora informação o significado que ela tem: em 1987 foram queimados 80 mil quilômetros quadrados de floresta nativa em apenas três Estados amazônicos, quatro vezes mais destruição do que a média dessa que foi a década do fogo.

O dado foi contestado. Nunca foi aceito pacificamente pela comunidade acadêmica, até hoje. Mas pelo menos um dos cientistas que o produziu sustenta a validade da informação. A dúvida persiste. Mas é dúvida tão grave que devia ter sido compromisso de honra da ciência não deixar que ela perdurasse. Mas ela perdura.

Desde então, o JP foi a única publicação da imprensa brasileira a não perder a memória desse número terrível, marco da destruição de que a Amazônia é vítima, a pretexto de ser ocupada, desenvolvida. Sempre que posso, reavivo a lembrança e cobro respostas, mas elas nunca vieram…

Foi com espanto que os cientistas da Nasa, a agência espacial dos Estados Unidos, viram a imagem transmitida pelo satélite NOAA-9 naquele dia, no início de setembro do ano passado [1987]. Ao longo das principais estradas que cortam o sul do Pará, o norte e o oeste de Mato Grosso e quase todo o estado de Rondônia, a floresta estava incendiada. Eram 6.800 pontos de fogo naquele dia.

Desde 1976, quando outro satélite norte-americano, o Skylab, “fotografou” um incêndio de 11 mil hectares, praticado em sua fazenda, a Vale do Rio Cristalino (já vendida), no município de Santana do Araguaia, no sul do Pará, os monitoradores dos satélites da Nasa se acostumaram a acompanhar as queimadas amazônicas. Mas nada se podia comparar ao que aconteceu em 1987.

A atividade humana alterou, no ano passado, 205 mil quilômetros de cobertura vegetal, área quase igual à da Guiana, ex-colônia inglesa. Só Rondônia destruiu praticamente 20% das suas matas numa única safra de fogo. Foi algo desproporcional: o Brasil, campeão mundial de desmatamento por causa do avanço sobre a “fronteira” amazônica, vinha preocupando o mundo com sua média de derrubadas, entre 1,2 e 2,5 milhões de hectares por ano.

Em toda a faixa tropical do planeta, onde ainda se abrigam as maiores reservas florestais, essa faixa tem variado entre 8,5 milhões e 11,5 milhões de hectares anuais. Subitamente, só os três estados amazônicos “fotografados” pelo NOAA-9, entre maio e outubro, desmataram 20,5 milhões de hectares, recorde sem paralelo na história humana.

Os incêndios provocados na Amazônia fizeram subir para a atmosfera 500 milhões de toneladas de compostos de carbono, 100 mil vezes mais fumaça e gases do que o que o vulcão “El Chinchón” liberou no México, em abril de 1982. Os cientistas já comprovaram que as erupções do “El Chinchón” alteraram a composição química da atmosfera e do clima da Terra. Falta verificar cientificamente a extensão das repercussões das queimadas de floresta sobre a camada de ozônio que protege a Terra da radiação ultravioleta do Sol. Que há interferência, ninguém mais duvida.

O IMPACTO DOS NÚMEROS

Quando alguns dos participantes do seminário internacional sobre manejo das florestas tropicais, promovido no Rio de Janeiro, na última semana de abril, pela Fundação SOS Mata Atlântica e o World Wildlife Fund, se referiram a esses números, cientistas estrangeiros relutaram em acreditar. 

Ainda desconfiados, só começaram a baixar as resistências ao saberem que o IBDF (Instituto Brasileiro do Desenvolvimento Florestal – hoje Ibama) referendavam os dados, produzidos pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), de São José dos Campos, São Paulo, com base nas imagens do satélite NOAA-9.

Procura-se atenuar o impacto da revelação com uma relativização: dos 20 milhões de hectares atingidos por desmatamentos, 12 milhões de hectares seriam áreas de mata fina, cerrados, capoeiras ou mesmo pastos degradados, “Somente” oito milhões de hectares constituiriam florestas densas nativas.

Mesmo aceitando-se essa temerária atenuação, é impossível minimizar o significado da destruição: com 100 metros cúbicos de madeira por hectare, em avaliação conservadora, seriam 800 milhões de metros cúbicos de madeira. Numa cotação quase simbólica, de 30 dólares por metro cúbico (as espécies mais valorizadas estão acima de US$ 300), significaria rendimento potencial de 2,4 bilhões de dólares, mais de 10 vezes o que o Brasil faturou com as exportações de madeira no ano passado.

Este cálculo simplório pode parecer – e é – arbitrário, mas é igualmente modesto. Um metro cúbico de floresta tropical contém mais energia do que um barril de petróleo. A diferença está em que 80% desse potencial energético são simplesmente destruídos, pelo fogo ou pelo desperdício.

Segundo os cálculos dos técnicos que atuam na indústria madeireira, para cada metro cúbico que chega ao pátio das serrarias, sete metros cúbicos ficam apodrecendo na mata ou se perdem pelo caminho até o local de beneficiamento. E a metade de cada metro cúbico que é serrado acaba sendo jogada fora como coisa inaproveitável ou queimada a céu aberto, ao lado da serraria, como se pode testemunhar no centro da cidade de Açailândia, no Maranhão.

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Foto: Divulgação/ Michel Danras/ AFP

O raciocínio adquire tonalidades ainda mais lúgubres quando deixa a bitola da madeira sólida. Uma floresta não se reduz a ser fonte de fornecimento de madeira: ela pode permitir múltiplos aproveitamentos, conforme o homem esteja disposto a ampliar a sua percepção. 

Durante o seminário no Rio de Janeiro, o cientista Gerardo Bukowski, nome conceituado, que aparece entre os pesquisadores de tendências pragmáticas, apresentou uma das raras experiências de manejo florestal, que vem sendo conduzida na Costa Rica; e reconheceu que em determinados bosques o homem  só tem a ganhar deixando a floresta com seus processos criativos naturais (dos quais resultam sementes, essências, princípios ativos e a própria complexidade da vida selvagem), sem qualquer interferência .

O cientista afirmou que um hectare de floresta amazônica pode render oito mil dólares ao ano se, além da madeira, forem obtidos outros produtos florestais. Nesse caso, os 20 milhões de hectares desmatados (o que pressupõe que a cobertura vegetal foi de alguma maneira alterada) representariam 160 bilhões de dólares, se o agente da atividade econômica na Amazônia não fosse o predador alucinado que é – e que o governo financie para que assim continue a ser.

MUITO FOGO POR NADA

Muitos cálculos e raciocínios espantosos podem ser feitos se o autor se desvencilha do cálculo econômico estreitamente pobre que está na base do processo de ocupação da Amazônia. Mas ainda que não se chegue aos refinamentos de etnobiologia ou não se rompa o colossal etnocentrismo, que empareda os caminhos de acesso à Amazônia, uma análise mais racional ainda consegue produzir choques muito fortes.

Essas análises não estão mais saindo apenas das agências ecológicas ou de entidades preservacionistas. Entre os que as produzem, começam a aparecer órgãos governamentais e associações ligadas ao empresariado. E as matrizes desses ensaios são as “imparciais” imagens dos satélites, a fonte de maior credibilidade na sociedade contemporânea.

O Landsat, por exemplo, mostrou que 72% dos 12,3 milhões de hectares de florestas alterados até 1980 serviram para a formação de pastagens em fazendas de criação extensiva. Avaliações dos efeitos dessa atividade, como a efetuada em dezembro de 1985 pela Comif (Comissão de Avaliação de Incentivos Fiscais), chegam a conclusões melancólicas. Quase 80% do aplicado nessas fazendas foram desperdiçados. E, junto com o dinheiro, o capital da natureza.

Quando realmente chega a substituí-la (muitas vezes é só destruição), o produto criado pelo homem no lugar da floresta vale menos. Depois que 1,5 bilhão de dólares – dos US$ 2 bilhões investidos – volatizaram-se na ciranda de especulações formada pela política de incentivos fiscais, a Amazônia é, quando muito, um centro de recria e engorda de boi. Continua comprando cada vez mais alimentos fora de suas divisas. 

O maior tráfico, no entanto, é que o desmatamento significa simplesmente a queima de floresta, sem qualquer relação com um processo produtivo em bases racionais.

Se tanto, apenas 1% do potencial de madeira chega a ter algum tipo de beneficiamento. É também com 1% que o Brasil participa do comércio internacional de madeiras tropicais, embora tenha a maior floresta do planeta. Esse paradoxo aparece sempre nos discursos do IBDF, sem que o órgão tenha condições de resolvê-lo. Toda retórica sobre o destino florestal da Amazônia não conseguiu diminuir o enorme fosso que separa o potencial da região da sua produção real. 

A madeira continua a ser consumida na pira especulativa.

downloadLúcio Flávio Pinto Jornalista – um dos grandes jornalistas da Amazônia e do Brasil. Matéria publicada em Amazônia Real. Além de colaborar com a agência Amazônia Real, Lúcio Flávio Pinto mantém quatro blogs, que podem ser consultados gratuitamente nos seguintes endereços:  Lucio Flavio Pinto – acompanhamento sintonizado no dia a dia. Valeqvale – inteiramente dedicado à maior mineradora do país, dona de Carajás, a maior província mineral do mundo. Amazonia hoje – uma enciclopédia da Amazônia contemporânea, já com centenas de verbetes, num banco de dados único, sem igual. Cabanagem 180 – documentos e análises sobre a maior rebelião popular da história do Brasil. Foto de capa: Divulgação/ WAHYUDI / AFP

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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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