O Rei Nu

O Rei Nu

Por Lúcio Flávio Pinto

Em 1972, o mundo se reuniu pela primeira vez em conjunto para discutir sobre a relação entre o desenvolvimento e o . O local da conferência não poderia ser mais indicado do que Estocolmo, a capital da Suécia, padrão da qualidade de vida no planeta. Um dos temas centrais era a Amazônia, de volta ao epicentro do interesse internacional.

Essa atenção tinha uma forte motivação simbólica. A humanidade conquistava novas fronteiras no universo, com as viagens à Lua. Na , começava a ocupação de uma das maiores fronteiras territoriais, com o avanço de grandes estradas sobre o domínio da população nativa e da maior floresta tropical do globo.

Ufanista e orgulhoso do crescimento do Produto Interno do ao redor dos 10% ao ano, semelhante ao desempenho do “milagre japonês”, o governo militar, no auge da ditadura, sustentava na sua abundante propaganda nacionalista que os astronautas, lá do alto, só divisariam duas obras humanas: a grande muralha chinesa e a Transamazônica, com extensão superior a três mil quilômetros, uma linha vermelha cercada pelo mais denso verde que havia.

Para uma parcela da sociedade, era um choque. Afinal, a funcionava como o pulmão do mundo, liberando oxigênio para todos os terráqueos absorverem. Não podia ser destruída. Com sua inigualável de vida, também era uma fonte de informações sem igual sobre a vida na Terra. O governo brasileiro não poderia dispor sobre esse patrimônio da humanidade ao seu bel prazer. Tinha que aceitar a cooperação mundial.

O chefe da delegação brasileira, o general (da reserva do Exército) Costa Cavalcanti, fez o contracanto imediato. O Brasil tinha o direito e a legitimidade suficientes para continuar a promover a ocupação nacional da sua última grande reserva de recursos naturais, ao seu modo, acelerado e intenso, integrando-a à unidade nacional para não entregá-la aos estrangeiros rapaces, sempre cobiçosos em relação a um “espaço vazio” (apesar de tanta floresta e da presença humana milenar) equivalente ao espaço denso de atividades da Europa Ocidental.

Afinal, estava adotando “medidas destinadas a aumentar a participação das populações no processo de desenvolvimento através da redução das desigualdades sociais e econômicas e da manutenção de taxas aceleradas de crescimento. Tais objetivos podem ser alcançados mediante o uso racional dos recursos do meio ambiente, propiciando-se às nações menos adiantadas a possibilidade do aproveitamento, industrialização e comercialização de suas matérias primas e seus produtos, e proporcionando-se aos seus cidadãos a oportunidade de usufruir dos modernos recursos da e da tecnologia”.

Durante a apresentação do seu relatório à conferência, o general, que se tornou político na onda da revolução dos tenentes, que ocuparam o poder depois da revolução de 1930, sempre combatendo o populismo derivado da visão de Getúlio Vargas, expressou o seu reconhecimento “pela orientação e apoio que recebi de Sua Excelência, o Senhor Presidente da República, assim como do Senhor Ministro das Relações Exteriores e do Senhor Secretário Geral do Conselho de Segurança Nacional”.

A referência ao dirigente executivo do CSN poderia parecer estranha num encontro que deveria ser técnico e científico, independente de ideologias e políticas. Mas ele estava sendo sincero e realista na referência. O CSN era tanto a fonte dos processos de cassação dos corruptos e subversivos, considerados inimigos perigosos do regime militar, como da filosofia que orientava a corrida à Amazônia.

O próprio Costa Cavalcanti era uma figura híbrida de militar e político, com uma formulação autoritária e conservadora. Subordinada a ele estava a Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia). Seus incentivos fiscais poderiam significar a subscrição estatal de até 75% do capital necessário aos projetos agropecuários da iniciativa privada, permitindo-lhe poupar capital próprio, numa esquizofrênica forma de capitalismo de muletas, destinada a promover processos irracionais e caos, tudo em nome da míope soberania nacional, guiada pela geopolítica obtusa.

Promovendo a implantação de centenas de fazendas, no frágil e pobre solo das terras altas amazônicas, a Sudam era a força motriz do estímulo ao ingresso dos novos bandeirantes, em sua maioria novamente originários de São Paulo, que estavam botando abaixo a vegetação nativa para em seu lugar formar pastagem para o minguado rebanho bovino, de baixa qualidade fitossanitária e baixo valor comercial.

A ocupação pela pata do boi destruiu os vales do Araguaia-Tocantins, está destruindo o -Tapajós e agora se expande pelo Madeira. A devastação está acabando com as características amazônicas de Rondônia, hoje mais para o do centro-oeste do que para a floresta úmida amazônica, e colocou o antes intocado Amazonas no topo do ranking do e das queimadas deste ano. O ataque à natureza complementado por violência, conflitos, desigualdades e pobreza.

Quatro anos depois da conferência de Estocolmo, Paulo Nogueira Neto, que criou o primeiro órgão especializado em ecologia da administração federal, a Sema (Secretaria Especial do Meio Ambiente), e o dirigiu pelos anos iniciais, registrou no seu diário, em setembro de 1976, um pronunciamento feito na ONU pelo então ministro do Exterior, Azeredo da Silveira: “Ele afirmou que os países desenvolvidos usam os problemas ambientais para manter os países em desenvolvimento numa situação de dependência”. Nogueira anotou a respeito: “Parece que não existiu a Conferência de Estocolmo em 1972!”, com o acento de exclamação a traduzir a sua perplexidade.

A mesma, ampliada e agravada, que fica do pronunciamento que o presidente Jair Bolsonaro fez na mesma Organização das Nações Unidas. Mais à direita do que Costa Cavalcanti, quase meio século atrás, mais intolerante e irracional do que no auge da ditadura “desenvolvimentista”, o toque de absurdo no discurso do ex-capitão é a sua recusa em estabelecer a controvérsia sobre uma base factual. Já nem se fale em ciência, que ele ignora ou maltrata (a Amazônia tem míseros 2% do orçamento nacional de ciência e tecnologia), mas no elementar empirismo, de alguma maneira capaz de expressar a realidade.

A Amazônia que Bolsonaro apresentou na ONU não existe mais. Existia em 1972, quando o desmatamento era de menos de 1% da sua superfície. Com a multiplicação 15 ou 20 vezes desde então, a descrição do presidente é um escárnio. Como no conto de Andersen, é a roupa do rei nu. Como na lenda, só ele não vê a sua nudez vergonhosa.

Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Acesse o novo site do jornalista aqui www.lucioflaviopinto.com.

 

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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