O Vaqueiro Que A Vaca Matou

O Vaqueiro Que A Vaca Matou

CAXAMBU – TAPAJÓS

Yara Cecim (1916-2009)

Antônio era um vaqueiro muito estimado por quantos o conheciam, por seu espírito alegre, gozador, contador de bravatas.

Seus 28 anos vividos sadiamente, seus cabelos pretos encaracolados esvoaçando ao , o chapéu de palha caído para trás, seguro por um cordão de envira trançada, galopando em seu cavalo branco com manchas amareladas, rodando o laço alegremente no ar enquanto cercava a rês fugitiva, mais parecia um garotão de apenas 18 anos.

Assim corria ele os campos e colinas, cantando com voz doce belas modinhas que ele próprio improvisava ao violão, sentado na soleira da porta, enquanto a lua derramava seu luar de prata no terreiro de areia branca varrido a vassoura.

Mas Antônio não era só o vaqueiro tocador de violão, gostava de contar bravatas em que sempre era ele o herói.

Também gostava de fazer chulas para cantar nas reuniões, embaixo do barracão, envolvendo segredos, namoros e as derrotas dos companheiros, o que era motivo da gargalhadas para uns e de contrariedades para outros. Mas Antônio nunca brigava nem aceitava provocação de ninguém – “Somos amigos e só estava brincando, companheiro” – e assim passava a contar suas próprias derrotas fazendo-os rir também às suas custas:

Certa vez, numa festa de ramada, briguei com dez por causa de uma caboca, a mais bonita e cobiçada do lugar, e terminei saindo com ela para dexá em casa. Quando nós estava conversando de baixo do pé de árvore, fui surpreendido pela dela que, com um tição aceso, me botou pra correr, levando nas costa do paletó de linho branco as marca do carvão.

Sempre terminava assim as brincadeiras de Antônio, e o companheirismo continuava sem ressentimentos. Até as da Casa Grande corriam para o alpendre quando escutavam ao longe sua voz, ao cair da tarde, recolhendo a boiada para os currais, porque sempre em sua garupa vinha uma prenda para elas. Quando não era um ninho de passarinho com seus filhotes, eram frutos silvestres ou mesmo do campo. Depois, a pedido delas, jogava para o ar o chapéu de palha já um tanto surrado, saía galopando atrás, disputando-o com o vento, até apanhá-lo no chão à das Amazonas, pendurado do lado do cavalo que a tudo se prestava, parecendo entendê-lo. E seu riso fazia-se largo, quando escutava as palminhas das crianças.

Nessa tarde, porém, o destino preparava uma surpresa, tanto para ele como para elas, que ouvindo sua voz ainda longe, correram para a varanda. Mas faltava algo na voz de Antônio nesta tarde. Talvez o tremor provocado pelo galope do cavalo, porque ele chegava a pé e trazia nos braços alguma coisa que segurava como se carregasse uma

Já há alguns meses uma vaca coberta fugira para as colinas e nunca mais voltou para o curral, o que fez com que todos os vaqueiros se empenhassem em procurá-la. Em vão.

Mas nesse dia, justamente nesse dia, Antônio completava 28 anos e o barracão embandeirado com ramos de palmeiras e flores do campo, amarrados nos esteios e o chão recoberto de folhas verdes, se preparava para festejar a data.

A panela com mingau de arroz cozido no leite de vaca e os garrafões de tarubá, esperavam as famílias dos vaqueiros, que já começavam a chegar, trazendo as cunhantãs vestidas de chita, enfeitadas de fitas e rendas, os cabelos luzidios cheirando a óleo de mutamba e cumaru de mistura com o perfume dos jasmins que traziam presos na cintura ou no decote do vestido.

As cigarras já espalhavam no ar da tarde o ciu-ciu-ciu com que saldavam a hora do Ângelus, quando o sol já sumia por trás das colinas refletindo os últimos raios dourados nas águas do lago.

E foi nesse momento que o tropel de um animal abafou o ciciar das cigarras e substituiu a cantiga de Antônio por um brado de horror saído com estertor, de sua garganta, enquanto um era projetado no ar e atirado à distância para ser novamente suspenso no chifre de uma vaca amarelada, que o sacolejava, para arremessá-lo de encontro a um tronco de árvore. E já se preparava para levantar novamente nos chifres aquele corpo inerte e ensanguentado, cavando o chão com as patas, jogando para traz aquela porção de areia, quando dois tiros de rifle vindos de pontos diferentes do barracão, a prostraram no chão para nunca mais se levantar.

Antônio, nessa manhã, vira a vaca amontada, com os chifres cheios de cipó e ervas daninhas e saiu em sua perseguição com o laço pronto para derrubá-la, e tanto nisso se empenhou, subindo e descendo montes e colinas, saltando troncos caídos e espinheiros, que seu cavalo passou a mancar, com as patas crivadas de espinhos, o que fez com que ele o libertasse da cela e dos freios, dando-lhe uma palmada nas ancas, deixando-o voltar só para o barracão, seguindo ele para o campo à procura da cria, pois viu que a vaca já não estava prenhe e que tinha as tetas cheias de leite.

Depois de procurá-la todo o dia, avistou-a à sombra de uma árvore frondosa sobre uma touceira de capim.

Com os olhos radiantes de alegria e não vendo a vaca nas proximidades, tomou nos braços aquela bezerrinha alva, de olhar doce como uma criança, e tratou de se pôr a caminho de casa, cantando uma canção dolente como um acalanto, pensando no presente que ia dar nesta tarde para as crianças.

Mas, diz a sabedoria popular, o que o homem põe, Deus dispõe. E foi isso que aconteceu a Antônio, nesse cair de tarde, que deveria ser para ele o mais alegre de toda a sua .

Como toda cria que se sente afastada do colo materno, a bezerrinha pôs-se a berrar, berrar, e Antônio encostou-se na cajuraneira à beira do lago, enrolou com uma das mãos a beira da calça, entrando na água aproximou o focinho da bezerrinha para que bebesse um pouco; e tão embevecido estava que não ouviu o tropel da vaca amarelada, que o apanhou de surpresa enfiando-lhe os chifres pelas costas atirando-o de encontro a cajuraneira .

Do barracão da ramada, que fora preparado para a festa em ao aniversariante, foram tirados o tarubá, a panela com o mingau de arroz, os violões e rabecas, sendo substituídos pelos terços, pelo choro convulso e pelo café com bolachas de soda. E toda aquela gente que foi para se divertir, tirou as fitas e os jasmins para enfeitar o caixão de Antônio, que recebeu, junto com o corpo, também seu violão, pois esse foi sempre o seu desejo.

Tempos depois, numa tarde quando as cigarras entoavam suas preces e as meninas brincavam à beira do lago, lhes pareceu ouvir o canto suave do vaqueiro e ao olhar para o lado da cajuraneira viram-no encostado ao tronco, com a calça enrolada até o meio da perna, chapéu jogado para trás, sorrindo para elas, que saíram em desabalada carreira, atirando-se nos braços da mãe, entre trêmulas e assustadas, dizendo que acabavam de ver Antônio.

Eu vi, mãe! Ele estava lá!

– Nós vimos sim! Era ele!

– Eu vi também, mãe! Ele estava cantando e chamando a gente!

Era ele, mamãe! Era ele!

– Vamos, filhas! Vamos rezar por ele. E, aconchegando as filhas a si, as levou para o quarto, ajoelhando com elas em frente ao oratório.

Desse dia em diante, todas as tardes, se ouvia a voz do vaqueiro que a vaca matou, apascentando o gado, e havia até quem o visse entre os vaqueiros trazendo a boiada para os currais.

 CECIM, Yara. Lendário: Contos Fantásticos da . Belém: CEJUP, 2004. p. 13-17

Fonte: Alma Acreana

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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