OS FUNERAIS DA MAMÃ GRANDE: RÕNÖRE AKRÃTIKATÊJÊ

OS FUNERAIS DA MAMÃ GRANDE: RÕNÖRE AKRÃTIKATÊJÊ

Todo mundo imaginava que a Mamã Grande era imortal” 

García Márquez. Los funerales de la Mamá Grande. 1962. 

Por José Bessa Freire

O povo indígena Gavião da Montanha, mergulhado em profundo silêncio, chorou a morte, no último dia 20 de junho, aos 105 anos, da Mamã Grande, como era conhecida carinhosamente Rõnöre, a matriarca do povo Akrãtikatêjê.

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 Sua neta, a cacica Kátia Gavião Tônkyre, me escreve, saudosa, contando a luta da avó guerreira contra os grandes empreendimentos privados e estatais, que invadiram seus territórios no sudeste do Pará e provocaram massacres e mortes.

A lembrança que logo me veio foi a do conto “Los funerales de la Mamá Grande” de Gabriel García Márquez, embora os perfis dessas duas figuras femininas, quase míticas, sejam antagônicos. Em comum, só mesmo o cognome adquirido por serem mulheres poderosas. 

Mas enquanto o poder da personagem de ficção do escritor colombiano tinha origem na riqueza material, a nossa Mamã Grande de carne e osso tirava força da sabedoria, capacidade de liderança e solidariedade. Por isso, os funerais das duas foram bem diferentes.

– Vovó Rõnöre passou a ser chamada de Mamã Grande por ter criado muitas crianças, cujos pais morreram na luta em defesa do território, completamente inundado pelo lago do reservatório da Usina Hidrelétrica de Tucuruí” – diz a cacica Kátia, que relembra a luta durante a ditadura empresarial-militar, na década de 1970, quando, após as mortes, foram deslocados compulsoriamente de seu território tradicional para a Terra Indígena Mãe Maria, localizada no município de Bom Jesus do Tocantins (PA).

GUERRA QUÍMICA 

O povo Akrãtikatêjê-Gavião, identificado como Gavião da Montanha, se defendeu. Foi então, na resistência, que Mamã Grande se agigantou. 

Casada com o cacique Rõnöre, falecido precocemente, com ele teve três filhos: Matias, vítima da Covid, Zeca, ainda vivo, e Hõpryre Rõnöre Jopikti Payaré (1951-2014), que se tornou cacique aos 10 anos de idade e com sua mãe liderou o enfrentamento com empresas privadas e com o Estado brasileiro, ao lado de Krohokrenhum, sobrinho pelo lado paterno.

Kátia conta que “uma empresa chegou até apelar para a guerra química, jogando sobre a aldeia veneno usado na guerra do Vietnã. Ocuparam militarmente nosso território, com armas apontadas para nossas cabeças. Durante todo o tempo no qual a população foi dizimada, Mamã Grande manteve sempre aceso o fogo da esperança e da união entre os sobreviventes”.

Inspirado no exemplo de Mamã Grande, seu filho Payaré, líder político e espiritual, se recusou a sair do território Akrãtikatêjê, lá permanecendo até 1983. No final, acabaram indo para a T.I. Mãe Maria para não serem assassinados como os outros, depois da assinatura de um acordo com a Eletronorte, mais tarde descumprido pela empresa. Lá, em Mãe Maria, recriaram lago e praia, desenvolveram as roças e a piscicultura em tanques de peixes, implantaram sistema agroflorestal e coletaram castanhas.

Durante esse processo, Payaré criou, em 1992, a escola indígena dentro da aldeia. No final de março de 2014, aos 63 anos, ele faleceu, após vencer a batalha judicial contra a Eletronorte. Embora não reconhecida formalmente como cacica pelos interlocutores militares e empresariais, “para nós Mamã Grande foi essa pessoa de valor que inspirava a luta” – diz sua neta Kátia.

LÍNGUA PROIBIDA 

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Kátia continua ressaltando o caráter de educadora de sua avó:

– O legado que deixou nos fortalece. Ela ensinou os jovens a cantar, a valorizar a identidade, a língua, a cultura, a recusar alimentos processados, que começaram a penetrar nas aldeias com aditivos químicos, gorduras ou agrotóxicos. 

Orientou a alimentação com produtos sadios que a terra nos oferece: macaxeira, abóbora, batata, amendoim, banana, mamão, castanha, uxi, pequi essas frutas da natureza, indicando as formas de preparar e consumir. Foi uma educadora no sentido mais profundo do termo.

Ligada visceralmente à natureza, sabia tudo sobre plantas e animais – diz a cacica Kátia, que destaca as recomendações da Mamã Grande sobre “o cuidado com o corpo e com a mente, necessário para viver com qualidade até na velhice e poder continuar combatendo em várias frente de luta:

– “Diziam que a terra não era nossa. Proibiram o uso da nossa língua, que pertence à família linguística Timbira, do tronco Macro-Jê. O Cartório não aceitava registrar a gente com o nome sagrado Akrãtikatêjê, alegando que não era nome cristão. Aí colocavam outro nome que eles queriam”.

Tônkyre Akrãtikatêjê, registrada como Kátia Silene da Costa Valdenilson, descreve o papel da sua avó na defesa da cultura:  

– Mamã Grande conhecia a língua, os cânticos, as histórias, os rituais, sabia classificar plantas e animais, daí ser reverenciada pelo povo Akrãtikatêjê-Gavião da Montanha, na bacia do Tocantins, compartilhada com os Parkatêjê, próximo à foz, e os Kyikatêjê na parte mais acima do rio. 

Esses saberes foram reconhecidos pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), com sede em Marabá, que já havia iniciado o processo para lhe conceder o título de doutora por notório saber, retardado pela burocracia.

O FUNERAL DE RÕNÖRE 

Kátia informa que, com a expulsão do território original, Mamã Grande e seu povo sofreram, mas continuam até hoje procurando justiça por não se conformarem com o tipo de reparação concedido pela Eletronorte:

– “A empresa ofereceu R$23 milhões em troca da terra, mas meu pai disse que não queria dinheiro, o dinheiro acaba, gasta, mas a terra não. O dinheiro nos divide, a terra nos une. Por isso, a que a gente quer é o nosso território, onde estão sepultados nossos mortos. O território garante a união, a cultura, a resistência, as festas e os alimentos tradicionais, por isso vale mais do que qualquer dinheiro ou oferta do capitalismo”. 

A neta diz que sua avó vai “sempre estar viva, ao lado de Payaré e de Krohokrenhum, que partiram para o outro lado, mas continuam presentes em nossa memória, sempre nos dando força. Quando a gente fica sem saber o que fazer, a gente pede ajuda pra eles, pede orientação, a gente crê que onde eles estão, olham por nós”.

Mamã Grande receava a extinção dos povos Gavião da Terra Indígena Mãe Maria e recomendava a união de casais, indígena com indígena, para procriarem e não deixar a população diminuir. 

Kátia seguiu o conselho: teve 8 filhos, 23 netos e 2 bisnetos. “Os velhos seguraram o nosso território – ela disse – agora temos de entregá-lo para as outras gerações. Hidrovia, barragens, duplicação da estrada BR-220, dois linhões de energia, uma ferrovia barulhenta da Vale, a gente fica meio sem chão com a morte da nossa avó”.

Lúcida até o último suspiro, Mamã Grande faleceu quando chegou a hora de sua partida, porque precisava descansar. A gente se conforma com a decisão lá do Alto, ela agora está nas mãos de Deus”. 

No sábado, 21 de junho, muito vento, muita chuva o dia inteiro fertilizando a terra durante o sepultamento, ao qual compareceram filho, sobrinhos, netos, bisnetos, tataranetos, filhos de criação, todos os parentes e os amigos da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), vindos de Marabá.

Os pastores celebraram um culto – a gente respeita todas as religiões. Minhas filhas e netas cantaram na nossa língua.

SENTADA NO TAMBORETE 

Ah, já ia me esquecendo de Maria del Rosário Castañeda y Montero falecida aos 92 anos. Garcia Márquez diz que a Mamá Grande do seu conto foi sepultada também debaixo de chuvinha fina, mas com pompa e ostentação. Seu corpo foi embalsamado. Sinos de todas as igrejas tocaram durante nove dias do luto oficial. 

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Compareceram o presidente da República, ministros, banqueiros, donos de fábricas e do comércio, generais, deputados, senadores e até o papa veio de Roma para reverenciar o poder da defunta. O Poder estava presente.

No final, o autor convida os “incrédulos do mundo inteiro a sentarem em um tamborete na porta de casa para ouvirem a história verídica da matrona mais rica e poderosa do mundo”, informando que o tabelião levou várias dias sem parar, listando as riquezas que ela deixou de herança acumulada com a exploração do trabalho de camponeses pobres.

Pedi emprestado o tamborete de García Márquez para contar aqui a história da nossa Mamã Grande Rõnöre, que hoje já faz parte da memória dos povos do Tocantins. E agora, para finalizar, peço emprestado os versos de Eliane Potiguara, autora de “Tocantins de Sangue”, que faz parte do livro “Metade cara, metade máscara (2004) e que pode muito bem ser dedicado à nossa Mamã Grande:

Há vida nesta flor / Há vida nesta vida

Tão guerreira / Desprendida”.

No mesmo livro, Eliane aborda no poema “Neste século de dor” a dor sofrida da mulher indígena, oprimida pelo colonizador e pela colonialidade. Descreve a situação de “ser fêmea na dor, espoliada na condição de mulher”.  

Agora, Eliane Potiguara é candidata à cadeira 33 da Academia Brasileira de Letras, em eleição que ocorrerá no dia 10 de julho. Se a ABL reconhecer a obra de uma extraordinária escritora, Eliane, de 74 anos, será eleita. Com os aplausos lá de cima de Mamã Grande Rõnöre.

E aqui na terra, entre outras, da atriz Glória Pires que manifestou nas redes sociais seu apoio à “primeira escritora indígena do Brasil, uma das vozes mais importantes na defesa dos direitos dos povos originários e na valorização da literatura indígena, cuja candidatura personifica a diversidade e a reparação histórica no Brasil”.

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p style=”text-align: justify;”>OS FUNERAIS DA MAMÃ GRANDE: RÕNÖRE AKRÃTIKATÊJÊJosé Bessa Freire – Professor. Escritor. Indigenista. Conselheiro da Revista Xapuri. Administrador e Cronista do blog https://taquiprati.com.br/, onde esta crônica foi publicada originalmente, em julho de 2025. 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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