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Os grileiros chegaram de repente

Os grileiros chegaram de repente

Por Altair Sales Barbosa

Saindo mansamente do seu quintal, sombreado pelas mangueiras, surgia o Senhor Sizenando, dedilhando numa violinha tosca, feita por ele mesmo, e cantando uma cantiga mais ou menos assim:

            Marimbondo amarelo me mordeu,

            Na pestana do olho e doeu,

            Nunca vi marimbondo como o teu.

            É o teu ai, é o teu, teu ai.

 Sizenando, um senhor octogenário, não sabia ler nem escrever, mas vivia feliz com a vida e com as sapiências que aprendeu com esta. Era carapina, pedreiro, artesão, fabricante de rapadura, açúcar mascavo, pequeno agricultor, plantava cana, feijão, mandioca, abóbora, inhame, e ainda nas horas vagas – sobrava tempo – se transformava em músico de rara sensibilidade. 

Fazia seus próprios instrumentos, uma violinha, uma rabequinha, um reco-reco, um tamborzinho etc. Tudo feito com muito capricho e sabedoria, para alcançar a sonoridade ideal e desejada.

O tamborzinho, por exemplo, era feito de um galho grosso de tamboril, podado na lua nova, cuidadosamente ocado com formão e seco com a quantidade controlada de luminosidade solar. O couro, que o tampava nas duas extremidades, tinha que ser de uma fêmea erada de veado mateiro, curtido num soro especial feito da casca de barbatimão. Os amarrios deste no tronco oco eram elaborados com embira do olho do buriti, retirada na lua minguante, para não interferir na sonoridade do instrumento, e balanceada com colares de sementes do capim do brejo, habilmente perfuradas com pontas de osso.

Sizenando era um músico habilidoso, elaborava suas próprias cantigas, com letras e melodias, as quais armazenava todas na memória. Outras músicas, do seu vasto repertório, dizia ter aprendido com Zé Caetano, um cego cantador, que nos fins de semana pedia esmolas cantando e tocando rabeca nas feiras dos povoados, mas que morava num ranchinho, bem na boca dos gerais, onde vivia com uma companheira e seu fiel ajudante Zizuíno.

Sizenando gostava de alegrar os visitantes com suas músicas e seu proseado, recheado de saberes do local. Orgulhava-se da sua casa, a única das redondezas com paredes de adobe.  Dizia, orgulhoso, que ele mesmo fizera os adobes e assentara as paredes.

Como também era carapina, assentou as portas e os portais de madeira rústica. Só o telhado era coberto com palmas de buriti. Casa de batente alto, abrigava, além do proprietário, a esposa, duas filhas e duas netas, que vez ou outra participavam de suas cantorias, principalmente quando executava um ritmo denominado por ele de rodada.

Sempre falava apontando para um pequizeiro dentro de um cercado:

– Tá vendo aquele pequizeiro?  Pois é, quando eu morrer, quero ser enterrado debaixo da sua sombra, onde descansam minhas éguas e meus cavalos. 

Eu sempre retrucava, vamos mudar de assunto, toca mais uma cantiga para nós…

Na última vez que o visitei (embora não fosse essa minha intenção), passei em sua casa para lhe dar um presente, que era uma das coisas que o deixavam bastante feliz: tratava-se de um garrafão de um vinho barato chamado Cantina da Serra, que ele sempre dizia ser uma das coisas de que mais gostava.

Logo ao chegar, notei-o meio diferente, todo entristecido e encabulado.  Foi então que comentei: 

– O que aconteceu, Seu Sizenando, estou notando o senhor entristecido. O que foi?

Ele então se pôs a falar:

– Mês passado, chegou por aqui, numa camionete, um homem alto com chapéu de grã-fino, trazendo quatro capangas, todos armados com espingardas. Desceu do carro e foi logo perguntando de quem eram essas terras, ao que respondi: são nossas.

Ele então retrucou: “Pois fique sabendo que essas terras me pertencem”. Abriu uma pasta e retirou de dentro uns papéis, dizendo: “Tão aqui os documentos, todos passados em cartório”. Foi então que lhe falei: Mas meu avô nasceu aqui, meu pai também, e eu, que estou com 85 anos, sempre morei aqui.

O moço da camionete parece que nada escutou, e continuou: “Não interessa, o que vale é este documento”. E ainda disse: “Não quero conversa, da próxima vez que eu passar por aqui, não quero ver ninguém nas minhas terras”. Depois, acelerou o carro e foi embora.

Tentei consolar Seu Sisenando, embora lá fundo eu soubesse o que estava acontecendo. Ele ainda comentou meio tristonho:

– Deve ser o tal do grileiro que o finado Zuza do Tatu de Cima falava.

Fiquei por ali mais um tempinho, me esforçando para esconder as lágrimas da minha revolta e impotência. A senhora me serviu um café, bebi e logo depois peguei o caminho de volta.

Fiquei sabendo que Seu Sizenando morreu um mês depois, de tristeza. Dizem… que sua cova foi feita debaixo do frondoso pequizeiro, mas que, passado cerca de um ano, mataram suas éguas e seus cavalos, derrubaram o pequizeiro e tudo que por lá existia foi posto ao chão. Os vizinhos se mudaram para os povoados e cidades. Da esposa, das filhas e das netas, nunca mais ouvi falar.

Os boatos e notícias que me chegam através dos amigos dizem que aquela boca de gerais se transformou numa grande plantação de soja e que as informações sobre os antigos moradores são raras e evasivas

O tempo foi passando, como as águas daquele rego que banhava o fundo do quintal da casa de Sizenando. Nunca mais voltei à região.

Às vezes, acordo no meio da noite, com os olhos marejados, sonhando com aquele local e, em meio à confusão do sonho, ainda me aparece o som daquela cantiga, embalada pelas folhas do buriti…

Marimbondo amarelo me mordeu…!

Altair Sales Barbosa – Sócio Titular do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás. Presidente do Instituto Altair Sales. Pesquisador convidado da UniEVANGÉLICA – Anápolis. Pesquisador do CNPq. Conselheiro da Revisa Xapuri.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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