Conheça as histórias das curandeiras do sertão: mulheres que preservam as práticas de orações, cantos, raízes e garrafadas
Por: Bruno Blecher* – Fotos: José Medeirs, de Exu (PE) – revistagloborural

Como você virou parteira?
Qual ferida de boca?
As mulheres de hoje não aguentam mais desaforo. Eu mesmo tenho uma. O marido era ruim pra ela que só… Ela teve quatro filhas com ele. Aí ele inventou de ir pra Minas.
E você apoiou?
Raízes
branca, jurema-preta.
Quem te ensinou a fazer garrafadas?
Ela foi dormir e, quando deu cinco horas da manhã, Socorro viu um homem bem alto, com roupa branca e um livro debaixo do braço. Ele olhou pra mim e disse ‘tá pensando que vai morrer, minha filha?’ Eu disse ‘tô’. ‘Mas não vai. Você vai servir tanta gente ainda.’ Eu disse ‘aleijada?!’. ‘Não, minha filha, que tudo que tem começo tem fim.
Daqui a três dias você estará boa.’ Aí ele me passou a receita de uma garrafada, que eu anotei em um pedaço de papelão. As plantas só tinha na Serra do Araripe e meu pai foi caçar. A garrafada tinha de ficar sete dias enterrada num buraco feito de frente para onde o sol nasce. Com três dias, eu já estava caminhando.
Há alguns anos, Socorro virou evangélica. Mas eu disse a eles que tinha algumas condições, que as minhas origens com D’us ninguém empatava. Não quero nem conversa! Porque eu tenho um trato com João Batista. O pastor concordou.Ela não morreu, mas ficou muito doente e a minha avó levou ela embora mais minha irmã de cinco anos pro Mato Grosso. Chegou lá, minha mãe morreu, depois morreu minha avó. Minha irmã ficou com minha tia. Elas ficaram pra lá, eu fiquei pra cá.
A mulher do meu pai judiava muito de mim, diz Socorro. Minha outra avó veio me buscar. Morei com ela dois anos, mas ela morreu também. Tudo que me pertencia morria. Voltei para o sofrimento de novo. Aí eu pensei: quer saber de uma coisa, D’us é grande e o mundo é largo. Eu não tô amarrada aqui. Casei e fui-me embora. Tive quatro filhos – três homens e uma mulher.
Como você escolhe as raízes?
É intuição que vem da minha cabeça. Quando chego na mata eu converso com as plantas. Olho pra elas, aliso e digo olha, eu tenho tanta dó, mas eu vou pedir a vocês uma casca, uma plantinha só. Eu não estou enricando, não tenho ganância por nada. Eu só quero que uma pessoa fique boa, tem uma pessoa sofrendo tanto, uma doença comprida. Eu posso tirar uma casca? Eu sei que você não é minha, não lhe plantei. Eu prometo que não lhe mato.
As rezadeiras
Uma espada branca de madeira é o principal instrumento da rezadeira no congá. Ela coloca a espada de São Jorge e Santa Bárbara na testa da pessoa. Sempre eu tive visão das coisas, só que eu não entendia o porquê dessa sabedoria que D’us estava me dando. Eu peço ajuda aos guias da mata.
Às terças e quartas-feiras, é dia de reza na casa de Maria Anunciação Barros, a Dona Neta, de 61 anos, na rua Eufrazio de Alencar, no centro de Exu. No congá (altar) de Neta há imagens de São Jerônimo, do Doutor Tarcio, um médico da cidade que morreu nos anos 70, e da Santa Joana d’Arc, santa padroeira da França e uma das chefes militares da Guerra dos Cem Anos.
Eu não incorporo, eu rezo e peço iluminação. Os guias encostam em mim e me dão poder. Isso aqui é um sofrimento. Não tenho o direito de fazer o que a gente deveria fazer da vida. Tenho de ser toda certinha, não posso mentir, não posso arrumar uma paquera. Pra receber os poderes dos guias da mata, não posso pecar, tenho de ser como uma criança de 10 anos.
No topo da Serra do Arapuá, no município de Carnaubeira da Penha, Pernambuco, a mestre Joaquina, de 97 anos, canta suas toantes, uma das tradições do povo Pankará. Ela já perdeu a conta de quantas crianças nasceram em seus braços (dizem que cerca de 800), inclusive netos e tataranetos.Eu não sou mestre, eu não sou nada. Sou um viajeiro errante nessa estrada, canta Joaquina, que é a mais idosa detentora dos saberes ancestrais da tradição Pankará. Parteira, rezadeira, benzedeira e raizeira, ela atribui seus feitos aos “encantadores da natureza”.
Reverenciada pelos quase 4 mil indígenas que vivem naquela serra, ela é conhecida como a “mãe de todos”. Joaquina durante muitos anos foi tachada de feiticeira e macumbeira pelos brancos e obrigada a praticar seus rituais às escondidas. Hoje, muitos vão à serra procurar ajuda da curandeira indígena.
*Colaborou Alvaro Severo, de Serra Talhada (PE)

A HISTÓRIA DA SAMARICA
Os médicos nordestinos são os primeiros a reconhecer a importância das parteiras para o Sertão. O obstetra Zé Dantas, parceiro de Luiz Gonzaga, dedicou às comadres uma de suas mais lindas e longas canções. A versão completa de “Samarica parteira”, com dez minutos de duração, foi gravada em 1973 por Luiz Gonzaga, o peão Lula.
Capitão Barbino, apavorado com a dô de menino de sua mulher, Juvita, manda seu peão Lula montar na bestinha melada e riscar ligeiro para buscar a parteira. Quando ele já ia riscando, Barbino ainda ameaça: olha, Lula, vou cuspi no chão, hein! Tu tem que vortá antes do cuspe secá!
E lá se vai Lula atrás de Samarica, abrindo cancelas, atravessando lagoas, sapecando a pobre égua, na maior carreira, até chegar à casa da parteira. Samarica, é Lula… Capitão Barbino mandou vê a senhora que Dona Juvita tá com dô de menino.
E risca de volta, com a parteira, à fazenda. Piriri tic tic piriri tic tic piriri tic tic nheeeiim… pá! Piriri tic tic piriri tic tic bluu oi oi bluu oi, uu, uu. Patateco teco teco, patateco teco teco, patateco teco teco.
Samarica chegou, ele grita para o Capitão. Samarica sartou do cavalo véi, cumprimentou o Capitão, entrou prá camarinha, vestiu o vestido verde e amerelo, padrão nacioná, amarrou a cabeça c’um pano e foi dando as instrução: acende um incenso. Boa noite, D. Juvita. A moça reclama da dô.
É assim mermo, minha fi’a, aproveite a dô. Chama as muié dessa casa, p’a rezá a oração de São Reimundo, que esse cristão vem ao mundo nesse instante. Capitão Barbino, bote uma faca fria na ponta do dedão do pé dela, bote. Mastigue o fumo, D. Juvita. Aguenta nas oração, muié.
Ai, Samarica, chora Juvita. Se eu soubesse que era assim, eu num tinha casado com o diabo desse véi macho.
Pois é assim merm’ minha fi’a, vosmecê casou com o vein’ pensando que ele num era de nada? Agora cumpra seu dever, minha fi’a. Desde que o mundo é mundo que a muié tem que passar por esse pedacinho.
Nasceu, é menino (choro de criança). E é macho! Ah, se é menino homem, olha se é? Venha vê os documento dele! E essa voz! Capitão Barbino foi lá detrás da porta, pegou o bacamarte que tava guardado há mais de oito dia, chegou no terreiro, destambocou no oco do mundo, deu um tiro tão danado que lascou o cano. Lascou, Capitão?
Lascou, Samarica. É, mas em redor de 7 légua não tem fi’ duma égua que num tenha escutado. Prepare aí a meladinha, ah, prepare a meladinha, que o nome do menino… é Bastião.
*Matéria publicada originalmente na edição de março de 2019 da Revista Globo Rural





