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PADRE JÚLIO LANCELOTTI: PERSEGUIÇÃO SEM FIM 

PADRE JÚLIO LANCELOTTI: PERSEGUIÇÃO SEM FIM 

Ainda nos primeiros dias de janeiro, ganhou destaque no noticiário nacional a intenção de um vereador de extrema direita da Câmara Municipal de São Paulo de instalar uma CPI para “investigar Organizações Não Governamentais (ONGs) que fornecem alimentos, utensílios para uso de substâncias ilícitas e tratamento de usuários que frequentam a região da Cracolândia”, segundo o requerimento do parlamentar.

Por Revista Focus Brasil 

O texto da CPI não menciona o nome de nenhuma entidade específica. Porém, em vídeo publicado em suas redes sociais no dia 7 de dezembro, o próprio vereador, que é filiado ao partido União Brasil,  informa estar colhendo assinaturas para instalar uma CPI e trata o padre por “esse sujeito”, além de atacar com ofensas outros parlamentares e ministros, levantando suspeitas a respeito de vídeos impróprios envolvendo o padre Júlio.

Em entrevista à Focus, padre Júlio, com respostas pausadas e didáticas, manifesta indignação com o comportamento da mídia. “Tudo que a gente fala na mão da imprensa vai ser dissecado”, enfatiza. “Tudo é estudado. Nada é feito sem uma intenção, até as fotos. A bondade é uma coisa que rareia. Tudo que puder ser feito para destruir, a imprensa é a primeira. Na imprensa não tem manual de redação, tem manual de retaliação”, desabafa.  

Padre Júlio não faz parte da diretoria de nenhuma ONG, é coordenador da Pastoral do Vicariato Episcopal para a Pastoral do Povo da Rua, um braço da Arquidiocese de São Paulo, sediada na Paróquia de São Miguel Arcanjo. Fundada na década de 1990, sua atividade não envolve a administração de recursos financeiros. Ele também não integra a diretoria ou o conselho do Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto, conhecido como Bompar, entidade mencionada pelo vereador em entrevistas sobre o caso. A presidência do Conselho Deliberativo é ocupada por um membro da Igreja Católica.

O Bompar possui certidões que a reconhecem como de utilidade pública municipal, estadual e nacional. Atuando desde 1946, acolhe diariamente mais de 10 mil pessoas por dia, em 52 núcleos de atendimento. Desenvolve, entre outras atividades, o projeto Consultório na Rua, uma parceria com a municipalidade para atendimentos na área de saúde, prática corriqueira nas atividades assistenciais de governos em todos os níveis: municipal, estadual e federal. A Bompar é uma das entidades para as quais o padre encaminha pessoas em situação de rua que necessitam desses ou de outros serviços.

Na entrevista, ele fez questão de convidar para sentarem-se ao seu lado, João, de 27 anos, e Antônio, de 39 (nomes fictícios). “Essas são pessoas importantes pra mim”, afirma, ao colocar em prática o que prega em suas celebrações. No decorrer da conversa, ele se referiu diversas vezes aos dois homens para exemplificar seus argumentos. 

João é um dos voluntários que ajudam na distribuição do café da manhã, limpeza, recepção e outras atividades de rotina da paróquia. Ele nos conta que quando chegou a São Paulo “ninguém falava ‘sim’, era sempre ‘não’. As portas estavam fechadas”. Sem dinheiro, acabou desabrigado e foi dormir na rua, quando decidiu procurar ajuda para voltar para o estado do Rio de Janeiro. 

O padre pediu que ele voltasse no dia seguinte para receber a passagem. Mas João retornou alguns dias depois, para comunicar ao sacerdote que havia conseguido trabalho. Hoje recebe um salário mínimo e complementa a renda com uma bolsa aluguel, por estar realizando um tratamento de saúde. “Este meu amigo me ajuda muitíssimo” diz, abraçando João, que abre um largo sorriso. 

O mineiro Antônio convive com padre Júlio desde 2016 e se lembra da data exata em que o conheceu. Retornou à terra natal no ano passado, para viver com a família. Dependente químico, ele explica que teve dificuldade de integração devido ao vício.  “A pessoa que não usa (a droga), não vai aceitar. Ela não tenta compreender que talvez aquilo seja uma doença, eu vejo como uma doença”, lamenta. “Este aqui é meu amigo”, diz Antônio sorrindo e esfregando as mãos nervosamente, ao se referir ao padre, que lhe oferece um afago e pede que alguém traga um copo de água para Antônio.

Enquanto padre Júlio acolhe os “indesejáveis”, o vereador extremista autor do pedido de CPI, destinou, só em 2021, R$ 1,5 milhão para festas, incluindo uma na qual o tema era os anos 1980. A igreja evangélica Mensagem de Paz também recebeu mais de R$ 1 milhão de recursos públicos direcionados pelo parlamentar, segundo reportagem do site Intercept Brasil. Até o fechamento desta edição, após a repercussão negativa do caso, ao menos 10 vereadores dos 23 que apoiaram o requerimento haviam retirado sua assinatura.

Focus: Quem o senhor defende? Quem são essas pessoas? 

Pe. Júlio: Não é quem defende, é quem convive. Convivo com os indefensáveis. Quem defende e quer conviver com as pessoas que ninguém quer, numa sociedade tão marcada pela desigualdade? Se você está do lado daqueles que são rejeitados, você vai ser rejeitado. Então, não é que eu diria ser maldade das pessoas, é a lógica. Isso até nas amizades interpessoais, se você não se dá bem com ela (apontando outra jornalista), e eu me dou bem com ela e converso e acolho bem a ela, você vai achar o quê? Por que você é amigo dela? Você viu tudo o que ela me fez? Isso acontece, não é? Até no ambiente de trabalho, você conversa com determinada pessoa do ambiente de trabalho, do escritório, o outro que teve problema com ela, você diz, ‘nossa, você sabe quem é aquela ali?’ Você está todo de amizade com ela, mas sabe o que ela fez pra mim? Não é isso que acontece? Então, você conviver com os que são rejeitados, você vai ser rejeitada também. Você não muda ninguém. Ninguém muda ninguém. A mudança se dá se a pessoa quer mudar. Não é a consciência que determina a realidade, é a realidade que determina a consciência, e como diz o Leonardo Boff, todo ponto de vista é a vista a partir de um ponto. Então precisa saber a partir de que ponto você vê. Nisso eu sou muito marxista, a realidade é que determina a consciência.

Como é esta convivência? 

Estou convivendo com pessoas. Eu sempre digo, os moradores de rua não são anjos nem demônios, são pessoas. Alguns deles são terraplanistas, alguns deles são machistas, são homofóbicos, são racistas. Eles também são atingidos pela grande mídia, pelo pensamento dominante. Eles também pensam o que todo mundo pensa. Não é porque eles estão na rua, que eles são diferentes. Eles são diferentes do ponto de vista da desigualdade. Mas a ideologia dominante é a mesma. A mesma novela que você assiste, eles assistem. O mesmo jornal que você lê, eles leem. O mesmo apresentador que fala aquilo que o povo tem que pensar, eles ouvem também. Eles não têm uma rádio alternativa deles. Eles pensam o que todo mundo pensa. Se você não convive, você não conhece. Se você não convive, você não ama. Nenhum de nós é só uma coisa. Você não é só o que eu tô vendo. Eu não sou só o que você tá vendo.

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Foto: reprodução/rede social “X”.

Esta nomenclatura “Cracolândia” surgiu pela primeira vez em 1995. Naquela época, o senhor já atuava na região. Nos últimos anos, pelo menos quatro programas diferentes foram iniciados. Seria justo dizer que algum deles esteve próximo de algum sucesso? 

A questão dos programas é que eles são programas de governo e não de Estado. Essa é a diferença. Parece uma coisa sutil, mas é uma nomenclatura específica. Uma coisa é programa de governo, outra questão é programa de Estado. O que a gente viu nessa região durante todo esse tempo foram programas de governo, não era o programa municipal para as pessoas em cena de uso, mas o programa da Marta, o programa do Haddad, o programa do Kassab, o programa do Serra. Programa de governo não resolve, porque o governo funciona por quatro anos, não daria nem tempo. Essa questão de sucesso, até um jornalista me perguntou: “Será que o que você faz não foi medido? Qual é a eficácia do que você faz? Será que se não tivesse eficácia, não convenceria?” Aí eu perguntei para ele: “a vacinação contra poliomielite, tem estudo que ela é eficaz? Por que as pessoas não tomam? Por que a vacinação da poliomielite caiu? Você quer mais evidência? A nossa lógica é muito cartesiana, e o jornalismo é muito cartesiano também, além de ser sensacionalista e abusivo, é cartesiano também, porque não tem explicação lógica…

As pessoas ficam esperando uma resposta… 

Um tal programa, foi eficaz? Em quatro anos não dá tempo de saber. Usando um paralelo, na Igreja Católica, quando se diz que aconteceu um milagre, para que um candidato a santo seja canonizado, o milagre tem que ser total, irreversível e completo. Em quatro anos de programa tal, resolveu o problema de 50. Mas tem duas mil pessoas lá. Então, programas sociais, para serem avaliados, eles têm que ser no longo tempo, eles têm que ser programas de Estado. Esse é o nosso problema. A chamada democracia representativa, ela elege a cada quatro anos um. Aí não dá tempo. E aí, quando a prefeita X entrou, ela desmancha tudo o que o anterior fez. Aí o outro que a sucede, desmancha tudo o que foi feito. Então, como você vai avaliar? Para a Prefeitura, é um número. Não leva em conta a pessoa. Ele é um número que vai para uma vaga. Não é uma pessoa que precisa de um lugar, é um número que precisa de uma vaga. Ninguém pergunta pra eles o que eles sentem. Ninguém pergunta. Na vida deles, lhes é negado o afeto.

Em uma entrevista o senhor passou a impressão de que sabia da existência do pedido de CPI desde dezembro… 

Desde dezembro, sim…

Mas não tinha se manifestado. O autor do requerimento disse em entrevista recente que o senhor “pulou à frente das armas”. Qual a sua reação a esta afirmação? 

Alguém te aponta uma arma, você vai fazer o quê? Vai reagir. Isso é jogo de palavras. Eu posso te afirmar uma coisa. Eu jamais ia apontar uma arma para ele. Jamais! Ele acha que eu pulei diante da arma. É interessante. Porque eu jamais vou apontar uma arma para quem quer que seja. E nunca vou usar a arma com que eles me atingem. Quando o vereador fala: “Eu nunca citei o Padre Júlio”, tem a gravação dele dizendo: “Ele será trazido algemado, coercitivamente”. Isso não é abuso de autoridade? Digo para as pessoas que não entendem o que se passa aqui, qual a situação dessas pessoas, para que venham. Serão bem recebidos.

NOTA DA REDAÇÃO: Esta entrevista foi publicada como matéria de capa da Revista Focus Brasil, publicada em 16 de janeiro. Severamente editada por nós, por limitação de espaço. Recomendamos fortemente a leitura da matéria completa. Foto de capa: reprodução/rede social “X”.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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