O piar da Juriti Pepena: A história do povoamento do Cerrado depois da chegada do Anhanguera

O piar da Juriti Pepena: A do povoamento do Cerrado depois da chegada do Anhanguera

Por: Altair Sales Barbosa

Dahy era um índio Uru-eu-wau-wau que habitava as cabeceiras do rio Jamari, no Planalto de Alta Lídia, na serra dos Pakaás-Novos, e era um hábil caçador que abastecia com carne seu povo. Numa certa noite, esse jovem índio teve um pesadelo que acordou toda a aldeia. Indagado sobre o que sonhara, disse que,  no meio da noite, por três vezes, ouvira o piar da Juriti Pepena e, em meio a uma cortina de fumaça que se formava, vislumbrou homens estranhos invadindo suas terras para roubar os últimos carocinhos de açaí.

A CHEGADA DOS CARAÍBAS E O TRUQUE DO FOGO

Os primeiros colonizadores de europeia que chegaram ao Cerrado eram representados pelos agrupamentos de bandeirantes.

A primeira bandeira sem dú foi a comandada por Bartolomeu Bueno (o pai), no final do século XVII, embora, conforme relatos do historiador Paulo Bertram, ele tenha se fixado mais em terras que hoje compreendem o noroeste e centro de , entre os rios Paracatu e Carinhanha, já no limite atual com a Bahia.

Entretanto, quando seu filho Bartolomeu Bueno da Silva Junior, o Anhanguera, chegou até os sopés da Serra Dourada, no Rio Vermelho, e encontrou o que sobrou dos conhecidos índios Goyá, eles lhe mostraram os vestígios do acampamento onde seu pai estivera há pelo menos 50 anos. Portanto, embora o povoado de Vila Boa tenha sido fruto de Bartolomeu Bueno, o filho, a “descoberta” daquele local e primeiro contato com os índios Goyá podem ser atribuídos a Bartolomeu Bueno, o pai.

Segundo Bertram, Bartolomeu Bueno era bugreiro, ou seja, caçador de índios para escravizá-los, e também grande matador dos povos indígenas. Ainda de acordo com os registros de Bertram, a esse bandeirante se atribui erroneamente a história de enganar os índios ateando fogo em álcool ou cachaça. Entretanto, convém salientar que essa tática era comum entre os portugueses. Há relatos de que outros bandeirantes a usaram. E mesmo que esses meios não tenham sido utilizados por Bartolomeu Bueno, o pai, para enganar os índios Goyá, certamente era do cabedal de táticas enganosas conhecidas por Bartolomeu Bueno, o Júnior.

O padre Luiz Antônio da Silva e Souza, em “O descobrimento da capitania de Goyaz”, publicado em 1812, relata uma história dessas:

O nome Serra do Ramalho é porque João Ramalho esteve por aqui, entre 1510 e 1512, aquele mesmo português foragido que se casou com a filha de Tibiriçá, a índia Bartira. Depois que ameaçou secar as águas dos índios, botando fogo no álcool, os índios ficaram amigos dele e o ajudaram a fazer muitas viagens de descoberta, inclusive a que fez nesta Serra da Carinhanha para procurar ouro.”

Henrique Bernardelli Ciclo da Ca%C3%A7a ao %C3%8Dndio Acervo do Museu Paulista da USP
Título: CICLO DA CAÇA AO ÍNDIO, de BERNARDELLI, HENRIQUE -1925
Foto: José Rosael-Hélio Nobre-Museu Paulista da USP = Acervo: Museu Paulista da USP

COMO TUDO COMEÇOU 

É conhecido que Goiás nasceu com a descoberta de ouro pelos bandeirantes, mas cresceu e se desenvolveu com a pecuária e com a agricultura. Dizem até mesmo que a pecuária teria precedido a mineração.

Embora essa afirmação se refira ao povoamento de Goiás, esse modelo de ocupação do espaço por populações não indígenas pode ser encontrado por todo o Central. E isso é bem possível, porque um dos nossos primeiros historiadores, o padre Silva e Souza, dá-nos notícia de que os bandeirantes do Anhanguera teriam se deparado com cabeças de gado bravio que já pastavam naturalmente na região do Vão do Paranã.

Esse gado teria vindo desgarrado dos Gerais da Bahia, onde, desde meados do século XVII, a pecuária – como já vinha acontecendo em todo o grande sertão nordestino – se tornava a principal atividade econômica e social.

Quaisquer que sejam as histórias contadas, em um ponto historiadores e geógrafos são unânimes: a atividade pastoril surgiu inicialmente para abastecer as minas; depois, já como atividade permanente, introduziu a mobilidade em um território até então enclausurado pelas grandes distâncias e pelo isolamento geográfico, e isso proporcionou o de um mercado interno e, consequentemente, serviu de base para a ascensão plena da atividade agrícola.

 


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Quando as minas de ouro, ainda no século XVIII, entram em decadência, fazendo com que boa parte dos que para cá vieram debandasse para outras regiões do país, a região e sua diminuta população permaneceram ilhadas, como náufragos, no coração do Brasil. Foram esses o estado de ânimo e a realidade retratadas pelos historiadores. Acrescente-se a isso as dificuldades enfrentadas pela agricultura no seu começo.

Durante os primeiros cinquenta anos de Goiás, os administradores coloniais – inclusive o primeiro governador, D. Marcos de Noronha, que governou de 1749 a 1753 – relegaram a agricultura ao patamar mais baixo das atividades produtivas.

Goiás produzia muito ouro e os produtos de que necessitava a população mineira – todos ou quase todos – vinham de fora e eram pagos, literalmente, a peso de ouro. Foi necessário que as minas se esvaziassem de vez para que não apenas a administração, mas também toda a população acordasse para a única saída econômica capaz de tirar a população do estado de letargia coletiva em que se encontrava: a agricultura.

Não havia outra saída, porque, fora da roça e da criação de gado como formas permanentes de atividade, Goiás se transformaria em breve em uma imensa tapera, abandonado que seria por seus moradores.

Muitos estudiosos da história, senão a maioria, ao comparar a época de fausto – que teria sido o ciclo do ouro – com o estado de desânimo – que de um modo geral tomou conta da população quando as minas secaram – classificaram essa fase da história como a da decadência. Qualquer que seja o nome que se lhe dê, ela foi, sobretudo, a fase das décadas perdidas.

Mas, como de todo revés – seja histórico ou não – pode-se tirar lições, lentamente os habitantes que aqui se enraizaram descobriram que o verdadeiro tesouro que procuravam se descortinava à vista de todos: esse grande ambiente natural, que é o Cerrado. As lições foram logo aprendidas.

Uma delas, que perdura até hoje, foi perceber que diante de um meio geográfico rico, em que dominam as imensas chapadas cobertas de pastos naturais a perder de vista, entrecortadas aqui e ali por placas de solos férteis próprios para a roça tradicional – o “Mato Grosso” Goiano e os  vales de importantes rios como o Paranaíba, Corumbá, Meia Ponte, Turvo-Bois, Maranhão, Crixás-Açu, Claro, Caiapó, Santa Tereza, Paranã… –,  a verdadeira vocação social e econômica do seu imenso território não era cavoucar a à procura do ouro incerto,  mas nela plantar e criar para se produzir alimentos, nem que fosse para a sobrevivência das pessoas.

Como um rio que não secara de vez, lentamente, os que permaneceram na região souberam reencontrar o leito natural de sua história e de sua vocação social e econômica: ser vaqueiro e lavrador.

Ao dar início a outra fase econômica, social e, sobretudo, , na qual se acham indistintamente envolvidos todos os habitantes do centro do Brasil, descobriram o caminho da roça, ou melhor, tomaram consciência de que, fora da atividade agropastoril, a área continuaria trilhando pelos caminhos da desilusão que o ouro abrira.

 

A CORRIDA DO OURO

Durante a Corrida do Ouro – no Brasil Central, período que, de forma geral, vai, a grosso modo, de 1722 a 1822, e conhecido como período colonial – todo garimpo, em princípio, transformava-se em um núcleo de povoamento urbano, cuja duração no tempo dependia exclusivamente da fartura com que a terra respondia às expectativas dos garimpeiros.

Assim, no começo, segundo afirmam os historiadores, Goiás povoou-se e despovoou-se com o ouro. Um dos presidentes da então Província de Goiás – José Martins Pereira de Alencastre, que governou pouco mais de um ano, entre abril de 1861 e junho de 1862 – resume, em seus Anais da Província de Goyaz, o que foi a saga da corrida do ouro nos sertões goianos e tocantinenses no período colonial:

Um imenso lençol de ouro se desenrolava às vistas ávidas do mineiro ambicioso, e suas esperanças eram satisfeitas, no princípio sem quase trabalho e sacrifício. Mas foram poucos os anos de grandeza e prosperidade. O meteoro passou à luz fugaz dessa transitória grandeza e sucedeu o quadro mais constritador [sic] o deslumbramento, porém, continuou por muito tempo ainda [… A mineração era uma espécie de Saturno a devorar seus próprios filhos, era um simulacro desse louco trabalhar das Denaides, sem fim e sem resultado, porque sempre estava em começo.”

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Todos nós sabemos hoje o que representaram, em prejuízo para a natureza e para as pessoas, os estragos materiais e psicológicos que os garimpos, os antigos e os atuais, deixaram e deixam pra trás.

Nem tudo, porém, é tristeza e constrangimento, porque, da atividade mineradora, nasceram alguns de nossos ricos patrimônios arquitetônicos e urbanos – Vila Boa, a cidade de Goiás; Meya-Ponte, hoje Pirenópolis. No seu rastro, vieram outras relíquias, que tiveram vida longa ou efêmera – Santa  Cruz, Pilar, Chapéo (atual Monte Alegre de Goiás), Flores (de Goiás), Crixás, São Domingos, Bom Fim,  atual Silvânia, Santa Luzia, hoje Luziânia, São José do Tocantins, rebatizada como o nome de Niquelândia, Corumbá de Goiás, Caldas Novas (que nasceu ao lado de fontes termais), Santo Antônio do Descoberto (que se chamava Montes Claros), Trayras (que hoje não passa de ruínas abandonadas e até trocou de nome, conhecida atualmente por Tupiraçaba, hoje um mero distrito quase despovoado de Niquelândia), São Felix, cujos testemunhos de sua existência não resistiram ao tempo, apesar de ter existido ali uma casa de fundição, o que lhe conferia um status de arraial importante, Jaraguá, e certamente muitos outros que tiveram vida curta para durar no tempo, como os arraiais do Maranhão, em Goiás, e Pontal, no Tocantins.

Do lado tocantinense sobreviveram ao tempo, dentre outras cidades, Arrayas, Barra da Palma – atual Paranã, Conceição (do Tocantins), Natividade, Chapada da Natividade, Príncipe (hoje Chapada de Areia), Dianópolis (ex-Duro) – que não nasceu propriamente do ouro, mas sim de um aldeamento de índios que atormentavam os garimpos –, Monte do Carmo e Porto Nacional (antigo Porto Real), esta última funcionando como cabeça-de-ponte de navegação e controle de passagem de pessoas que buscavam as minas do norte da capitania.

A ILUSÃO DO ENRIQUECIMENTO FÁCIL

A saga era contada de muitas maneiras, e as histórias de decepções e frustrações são muito mais trágicas e mais numerosas que as de alegria proporcionada pela ilusão do enriquecimento fácil. Como dizíamos, os lugarejos iam surgindo, mas a maioria não passava de simples aglomeração de palhoças sem nenhum conforto, em o que o nome “urbano” também não passava de um eufemismo, dada a falta sistemática do que se poderia chamar de “equipamentos urbanos”: arruamentos regulares, construções mais sólidas, administração, serviços urbanos banais etc.

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Anta, Curriola, Pontal (provavelmente o primeiro sítio do que seria o Arraial de Porto Real, à margem esquerda do Rio Tocantins), Pontal da Natividade (próximo à confluência do Rio Manoel Alves com o Tocantins). Outros não passam de lugares abandonados ou em completa ruína – Trayras, que foi, ao lado de Vila Boa e Meya-Ponte, um dos  mais importantes arraiais do ouro de Goiás, Ouro Fino   (Itaiú), Ferreiro, Cocal, Água Quente, Lavrinhas, Amaro Leite (cuja sede foi transferida para a atual cidade de Mara Rosa, às margens da rodovia Belém-Brasília), Santa Rita, hoje  chamada de Jeroaquara, distrito de Faina, a outra Santa Rita, distrito de Niquelândia, Muquém, lugar de peregrinação em homenagem à padroeira de Goiás,  Nossa Senhora d´Abadia, e muitos outros, cujos nomes e lembranças desapareceram para sempre do imaginário popular no Centro-Oeste brasileiro.

“SÍTIOS IMPOSSÍVEIS”

Apesar dos problemas existentes – o isolamento geográfico, os “Sítios Impossíveis” em que esses arraiais se erguiam, por razões óbvias, próximos às minas – no interior do Brasil – nas capitanias de Minas (Minas Gerais, Goiás-Tocantins e Mato Grosso-Mato Grosso do Sul), a mineração foi a atividade que maior influência exerceu sobre o aparecimento das cidades no período colonial.

A fisionomia urbana das cidades nessas áreas era praticamente a mesma, principalmente em Goiás-Tocantins e em Mato Grosso: uma grande praça no centro, com uma igreja matriz ocupando o lugar de destaque, para onde convergiam as ruas, geralmente tortuosas, decorrentes do relevo acidentado, predominante nas regiões auríferas.

Do lado goiano-tocantinense, excetuando-se Vila Boa (a Goiás Velho, antiga capital), e a Meya-Ponte de outrora – a atual Pirenópolis – os arraiais não passavam de pequenas aglomerações com mais de uma centena de casas. O elemento que mais os diferenciava das outras cidades modernas é a sua arquitetura colonial.

Geralmente, ao redor da grande praça, eram construídos, além da igreja matriz, os edifícios públicos e as casas burguesas, sobretudo na forma de sobrados. As casas de classe, digamos, média, ficavam mais distantes; eram baixas, normalmente geminadas, cobertas com telhas comuns de argila, pintadas a cal, com janelas enfeitadas com folhas de malacacheta (mica).

Mais afastado do centro da cidade, o habitat deixava de ser arquitetural para transformar-se em miseráveis habitações de taipa e de terra batida cobertas com folhas de palmeiras o com sapé, que abrigavam as classes pobres ou escravos alforriados. Eram as autênticas favelas coloniais.

Naquela época, a ocupação do espaço urbano obedecia à mesma lógica da segregação espacial presente nas cidades atuais. Tomemos o exemplo de Goiânia: ao redor da Praça do Bandeirante fica o centro comercial e financeiro; um pouco mais afastados, formando anéis urbanos, estão os bairros burgueses e ricos; mais distantes, brotam e multiplicam-se os bairros e conjuntos populares; constituindo a periferia proletária.

Aliás, praticamente toda cidade hoje, tanto no Brasil como no mundo inteiro, tem esse arranjo espacial, apesar da existência de numerosos condomínios fechados de luxo disputando os espaços urbanos periféricos com as populações proletárias.

Ao se observarem os mapas das cidades goiano-tocantinenses surgidas no século XVII, verificam-se que as que nasceram do ouro, paradoxalmente, estão, em sua maioria, situadas nas regiões mais pobres e mais despovoadas de Goiás e Tocantins, no vale do Rio Tocantins e de seus principais afluentes – Rio Paranã, sobretudo – e aos pés da Serra Dourada, em volta de Vila Boa.  Após o esgotamento do ouro das minas, muitas delas passaram de relativamente prósperas a decadentes.

Em Minas Gerais, como se sabe, o barroco da arquitetura das cidades coloniais era bem mais exuberante e mais rico, porque o ouro foi aí também mais abundante.  Ali nasceram as mais expressivas joias da arquitetura barroca que ouro pôde construir: Ouro Preto, a antiga Vila Rica, capital da capitania; São João Del-Rey, Sabará, Mariana, Caetés, Diamantina (a cidade da lendária Xica da Silva e que produziu mais diamantes que ouro), Tiradentes, Congonhas, para citar apenas as mais importantes.

 

CATEQUESE

Desde o período colonial, a questão indígena vem sendo tratada de maneira apenas para camuflar um problema crucial: a relação de forças entre índios e brancos que sempre pendeu para o lado do branco.

Na opinião da professora Marivone Matos, os aldeamentos e missões religiosas, principalmente os estabelecidos pelos jesuítas, traziam em seu bojo uma grande contradição: não atuaram como instrumentos de integração da população indígena no processo de colonização, mas quase que tão-somente como meios de propagação da fé e defesa dos interesses da Igreja ou das respectivas ordens religiosas.

Seus objetivos eram bem mais amplos do que os do elemento leigo, visto que as suas perspectivas quanto ao índio se lançavam rumo ao intemporal, contrapondo-se aos interesses da colonização leiga, para a qual o “silvícola” se apresentava apenas numa dimensão biológica e econômica.

Além do mais, ao mesmo tempo em que a Coroa portuguesa procurava proteger o índio contra a ação dos colonizadores, ela fechava os olhos aos massacres e à escravidão a que ele era submetido. Não conseguiram, como costumeiramente declaravam querer, que o índio se constituísse também num elemento povoador do território.

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REAÇÃO E DESTINO INDÍGENA

Essa correlação de forças se apresentava como algo inevitável e o que mais se lamenta em todo o tempo é a forma como ela se deu: o aniquilamento físico sistemático do indivíduo indígena por meio de todo tipo de “ suja” comandada por capitães-do-mato, eufemisticamente chamados de bandeirantes ou sertanistas.

Do lado do índio, as ações mais comuns eram as razzias, que não passavam de ataques pontuais a pequenos arraiais e povoados ou a fazendas, principalmente por parte dos índios Canoeiro e Xavante. Outros, como os Kayapó, que habitavam os sertões à entrada da capitania, com a chegada dos brancos, simplesmente desapareceram porque foram massacrados no início ou porque refluíram para regiões mais distantes do eixo da mineração, como única alternativa para não desaparecer como grupos humanos.

Os Karajá, hiptnotizados por uma profecia maldita, ou melhor, por um destino trágico que lhes parecia inelutável, renderam-se às armadilhas do homem branco – catequese, aldeamentos – e praticamente se desmantelaram como forma de organização tribal. Hoje tentam resistir em um pequeno agrupamento que não reúne mais de 150 pessoas às portas da cidade de Aruanã, em terras que são constantemente invadidas por proprietários de mansões de luxo ou por fazendeiros poderosos.

Os Javaé se refugiaram na Ilha do Bananal. Como eles, outros povos reunidos em tribos e nações menores – Xambioá, Akroá, Tapuia, Canoeiro – perderam a autoconsciência que tinham enquanto índios, cedo desapareceram do mundo, como os Goyá, ou então se renderam ao poder do Estado e da Igreja e lentamente se aculturaram, não mais opondo resistência ao que seria um desígnio dos deuses: a  ocupação e o povoamento irresistíveis de seus territórios por forças incontroláveis.

Os Tapuia, que surgiram da miscigenação dos índios Karajá, Xavante e Kayapó confinados no antigo aldeamento Carretão de Pedro III – hoje denominado de Carretão I e Carretão II, com negros e situado entre os municípios de Rubiataba e Nova América, em Goiás – como os Karajá, não passam de 150 pessoas.

Os Canoeiro se desenraizaram da terra onde viviam – no vale do Rio Maranhão-Tocantins – e ainda continuam procurando um território para abrigar meia dúzia de remanescentes dos grandes guerreiros que foram no passado.

No Tocantins, uns poucos Xambioá ainda persistem em volta da cidade do mesmo nome. Os Apinagé e os Xerente preservaram uma parte do seu antigo território e vivem em suas reservas às portas das cidades de Tocantinópolis e Tocantínea, respectivamente. Os Krahô têm seu território situado entre os municípios de Goiatins e Itacajá.

RESULTADOS DA GUERRA SEM TRÉGUA

Os avanços de uns (os brancos) ou recuos de outros (os indígenas) se constituíram, então, na dinâmica que caracterizou a formação territorial, o povoamento e a urbanização de Goiás e Tocantins, em que, numa relação de forças, conforme enfatiza o sociólogo Norbert Elias, em seu fabuloso livro “A sociedade dos indivíduos”, uma “ordem social de nível de organização superior – a estatal – substitui, inelutavelmente, a uma outra, menos equipada e de nível de organização inferior – a ordem ‘social tribal’”.

Os aldeamentos foram apenas episódios dessa guerra sem tréguas. Mas muitos deles se constituíram nos primeiros núcleos populacionais de algumas cidades goiano-tocantinenses: Mossâmedes e, talvez, porque não confirmado em documentos oficiais, Porangatu, em Goiás; Dianópolis, antiga São José do Duro, Pedro Afonso, Tocantínea e Itacajá, no Tocantins.  E nos municípios dessas duas últimas cidades, bem como nas vizinhanças de Tocantinópolis, encontram-se as importantes reservas indígenas dos Xerente, Krahô e Apinajé, respectivamente.

Em outras regiões em que, por causa das condições peculiares do meio ambiente, a população branca não conseguiu se fixar – caso da Ilha do Bananal –, foram criados, respectivamente, dois parques: o Parque Nacional e o Parque Indígena do Araguaia. O aldeamento do Carretão, no vale do São Patrício, próximo à atual cidade de Rubiataba, não evoluiu como cidade.


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Altair Sales Barbosa – Arqueólogo, em “O piar da Juriti Pepena: Narrativa Ecológica da Ocupação Humana do Cerrado”. Editora PUC-Goiás, 2014.

 


 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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