“Preto quando não suja na entrada…”
Já faz tempo que acompanho à distância o trabalho da baiana Ale Pinheiro, sócia-diretora de uma empresa chamada Aláfia Produções. Gosto do estilo de Ale, a quem não conheço pessoalmente. Gosto, sobretudo, do jeito franco com que trata os chamados “temas espinhosos”, por vezes evitados em nossa sociedade pretensamente branca e indisfarçadamente racista…
Por Zezé Weiss
Nasci de pele branca, com sangue de bisavó negra “retinta”, como diziam, e de avó “escura”, sertaneja como a mãe de Ale Pinheiro. Cresci entre uma menina e muitos meninos negros – a Petrina, o Valtanábio, o Sebastião, o Abdias, o Ledir, o Valdivino, o Preto (esse nem nome tinha). Entre nós, crianças pobres do interior de Minas, preconceito era um sentimento desconhecido, ignorado.
Mas mesmo por lá, naquele ambiente “favorável” da Fazenda Aldeia dos Índios, com mãe e pai antirracistas, quando se descobria uma arte nossa, tinha sempre alguém pra dizer: “Foi um dos meninos da Josina, preto quando não suja entrada…”. Pra salvar meus amigos pretos do castigo, eu às vezes assumia a culpa da arte, mas não adiantava, a sorte deles já vinha selada.
O texto de Ale Pinheiro, publicado em sua página no Facebook, trata disso. E é uma imperdível lição de resistência. Não há como não publicar. Taí:
Ale Pinheiro: “Preto quando não suja na entrada…
Passei a vida inteira ouvindo “preto quando não suja na entrada, suja na saída”. Isso era dito aos quatros ventos em Salvador, uma das cidades mais disfarçadamente racistas do Brasil.
Passamos um tempo morando num prédio ‘classe média’, na orla. Minha mãe, dita ‘branca’ pelos padrões estéticos locais, resolvia a questão se dizendo “sou sertaneja”. Anos depois entendi um quê de Euclides da Cunha em sua frase. Sempre a vi ser uma forte da muléstia todas as vezes que a vida testou ao limite suas crenças.
Meu padastro era típica, estética e claramente negro. Vivia alinhadíssimo em seus ternos, engomados religiosamente aos domingos, quando acompanhava o resultado dos jogos do (arg!) Vitória. (Calma, rubro-negros. É que as lembranças brotam…e as emoções tb.).
Minha mãe cagava para como estava vestida. Vezes saía com o cabelo despenteado, usava quase sempre calça para trabalhar e sapecava a roupa que mais parecia se adequar ao humor no dia.
O porteiro muitas vezes achava que ele era o motorista da minha mãe. A sopa me embrulhava o estômago pelo constrangimento que eu presenciava. A sorte é que ele era danado. Altivo mesmo. E estudado. Então se sentia confiante e respondia: “sou o marido dela”. Resolvia o assunto à porta e voltávamos a jantar.
Nos anos 80, ainda que ali pelo fim da ditadura militar, a polícia arrasava. As pessoas chegavam espancadas nas delegacias e não havia Direitos Humanos que se pudesse rogar.
Ele tinha carro, mas ninguém anda 100% de seu tempo dentro de um veículo. E estacionar e ter contato em locais públicos, como bancos e repartições, era uma tarefa às vezes arriscosa. Se a polícia implicava com alguém, o baculejo era certo, agressivo e o interrogatório podia demorar hoooras.
Meu padastro, a quem eu chamo carinhosamente de pai, me criou desde os 02 anos de idade. Esse negócio de ‘passou a mão’ ou aproveitou a ausência da mãe pra não sei o quê, em minha casa nunca teve isso, não.
Ele foi pai, na concepção mais plena do termo. Socorria pro médico, acompanhava na febre, reclamava quando eu fazia arte, me orientava, estudava comigo etc. Me viu menstruar, ter cólica, namorar e adultescer, tudo com muito respeito.
Tá certo que eu comecei a ler muito cedo e fui logo tratar de questionar o direito das mulheres, daí as nossas divergências se deram, pois ele era um tanto machista e queria controlar até meu respiro. Mas nem por isso o amor mudou.
Eu o vi, a vida inteira, ter cuidado com o que falar em púbico, com a roupa da semana, com o preparar o cabelo pra não parecer um desleixado, em lustrar sapatos e pasta de trabalho.
Certa vez, perguntei a ele porque era tão vaidoso (e é até hoje!), já que minha mãe não estava nem aí pra nada. Ele me disse: “Sua mãe é branca. A sociedade tolera mais e cobra menos. Se eu andar de qq jeito por aí, ainda mais sendo homem, a polícia vem pra cima de mim”.
Ali, na minha cara, o incômodo que eu não sabia nominar, mas hoje sei: racismo. O que não entendia era que, se dentro da minha casa, brancos e negros conviviam em sua mais perfeita harmonia, por que na rua havia de ser diferente?!
Pra piorar o baba, na adolescência, arrumei um namorado negro no colégio. Aquilo sacudiu o SOE, as freiras. Eu ignorava os cochichos. Certo dia, uma freira me disse: “Vc é uma menina tão bonita, tão inteligente, boa aluna etc, pode namorar o rapaz que quiser”.
Meus amigos dizem que quando vou dar uma resposta cortante, eu faço primeiro um sorrisinho a la Monalisa. Perguntei sorrindo e já respondi: Posso mesmo, Irmã X? Então respeite o rapaz que escolhi”. E saí.
Lógico que ela ainda se ocupou de me alertar: “preto, minha filha, quando não suja na entrada, suja na saída. Muito cuidado com este rapaz.”
Balela! Foi um excelente namorado. É meu amigo até hoje. Namoramos por anos e cores nunca foi questão entre nós. Mas é claro que eu percebia os olhares atravessados, os risinhos de canto. Porém eu tinha uma mãe a quem eu espelhava e rebatia tudo aquilo com meu tradicional “caguei”.
Sempre escolhi namorados pelo caráter. Por isso, já namorei gente dos mais diversos biotipos – pq não é isso que define uma pessoa na vida. Fato é que nunca vou me acostumar com racismo.
Eu dei essa volta toda e já devo ter perdido uma centena de leitores por causa do texto tão longo. Mas tá impossível controlar o orgulho que ora sinto da família Obama: nenhum escândalo com droga, nenhuma crise de vaidade, nada que desabone. Ao contrário dos seus sucessores brancos – que já chegaram fazendo merda – os pretos Obamas sambaram decência em cima do preconceito racista. Uns lindos!!
Ah, eu seleciono gente pra trabalhar. E decido vaga por currículo e competência. Agora, se ficar um preto e um branco, pau a pau, na minha frente, eu opto pelo preto, sempre. E não é peninha, não. Eles são muito dos danados! É pra dar oportunidade.
Essa coisa que, mesmo passados anos após abolir a escravidão, o BR não conseguiu resolver. Porque eu acho que a carne mais barata do mercado não precisa ser a carne negra. Tomara o Br melióre!”