Querem nos calar quebrando nossos pescoços
[divider]Texto: Mônica Francisco |[/divider]
Momento que uns vivem mais que outros, um jovem negro é morto a cada 23 minutos. Foi também em São Paulo que um empresário branco, morador de um condomínio de luxo, no Morumbi, desacatou a polícia. Ele não teve o pescoço pisado, ele não foi imobilizado, não foi derrubado, não ganhou uma gravata.
A mulher, periférica e pobre, trabalhadora, falou com o policial, defendendo um amigo que era espancado. Ela apanhou, teve o osso da perna quebrado com um chute. Ela foi pisada no pescoço. O policial apoiou o peso dele sobre o pescoço da mulher. O rosto dela foi esfregado no asfalto enquanto era algemada. Não são casos isolados: todas as pessoas assassinadas pelo braço armado do Estado em cinco cidades do Rio de Janeiro eram negras, entre elas mulheres e crianças, mostra o Mapa da Desigualdade da Casa Fluminense. São práticas constantes da política genocida executada pela polícia, sempre blindadas pela impunidade dos agentes da lei.
Foi outro dia que um policial pressionou seu joelho para manter a face da mulher negra no chão, para destruí-la, para dizer que ela não pode manter a cabeça erguida, para dizer que ela não pode falar nem ocupar espaços de poder. Foi outro dia que Claudia Silva Ferreira foi arrastada, enlameada, assassinada e seus algozes nunca foram punidos. Não faltam abordagens violentas. O recado é claro. Que a polícia não trata todo mundo igual, sabemos. Não são despreparados, não é falta de reciclagem ou de treinamento. Tanto não é que o empresário, mesmo agredindo o policial, não sofreu nenhum dano e teve sua integridade física mantida.
É racismo mesmo! É a certeza que para a estrutura, a vida negra e pobre vale menos. Ou não vale nada. A polícia e suas sucessivas violações não querem se submeter às reivindicações de civilidade e respeito aos direitos. Negros e negras são as principais vítimas de violência no país.
O relatório da Rede de Observatórios da Segurança do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), do período de maio de 2019 a junho de 2020, aponta que a taxa de homicídios no Brasil, uma das mais altas do mundo, é de 28 por 100.000 habitantes: “Entre os jovens negros do sexo masculino, na faixa de 19 a 24 anos, a taxa é de mais de 200 a cada 100.000 habitantes. Os negros são 75% dos mortos pela polícia. A desigualdade inaceitável desses números revela o racismo nosso de cada dia”.
Mesmo com toda comoção causada pelo assassinato de George Floyd, no final de maio, nos Estados Unidos, seguimos assistindo os casos que não são isolados. Em São Paulo, no Rio, na Bahia, e em todo lugar desse país, constituído sobre a barbárie da escravidão. Sobre a servidão de um povo. A escravidão é nosso berço, como diz Jessé Souza: “Nossa forma de família, de economia, de política e de justiça foi toda baseada na escravidão”.
São essas bases, que também sustentam a barbárie, que formam essa barbárie precisam acabar. Não haverá Brasil para todos enquanto forem usados coturnos e joelhos sobre os pescoços que já foram acorrentados. É preciso reação constante. O ato de pisar pescoços, assim como a asfixia de Floyd, é o recado claro dos que querem silenciar as vozes de um povo que, acreditam, não pode ter a cabeça ereta. A dignidade refletida em um corpo altivo, que além de trabalhador, é dono da própria história e identidade.
Essa história não será apagada na sola do sapato. Ninguém mudará a história daquela mulher, pisada no pescoço. Uma viúva, com cinco filhos e dois netos que trabalhava para se sustentar. Ela, como a maior parte das mulheres negras, é a responsável pela sobrevivência da família, na luta constante para se equilibrar na linha da pobreza. É isso que confirma a Síntese dos Indicadores Sociais (IBGE): 63% das casas chefiadas por mulheres negras no Brasil vivem abaixo da linha da pobreza.
Durante a pandemia do coronavírus, são as mulheres negras as mais impactadas pela pandemia, por serem maioria no trabalho doméstico e minoria em boa parte dos serviços essenciais. E, nesse contexto, é que ela conta: “Ele me empurrou na grade do bar, me deu três socos, me deu uma rasteira para me derrubar, ele quebrou minha tíbia”.
Mônica Francisco é deputada estadual e vice-presidente da Comissão de Combate às Discriminações e Preconceitos de Raça, Cor, Etnia, Religião e Procedência Nacional da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj).