Raizeiras do Cerrado: Guardiãs da medicina tradicional do Planalto Central
As raizeiras do Cerrado, também conhecidas como benzedeiras, são guardiãs da medicina popular. Elas utilizam raízes, cascas, resinas, óleos, folhas, argilas, água e outros diversos recursos naturais que são primorosamente manejados para o tratamento de diversos males.
Sua prática é baseada no conhecimento tradicional, transmitido de geração em geração, e no uso de diversos recursos, como: remédios caseiros, dietas alimentares, banhos, benzimentos, orações, aconselhamentos, aplicação de argila, entre outros.
Os conhecedores tradicionais, reconhecidos como raizeiros e raizeiras, são especialistas em caracterizar os ambientes do Cerrado, identificar suas plantas medicinais, coletar a parte medicinal da planta, diagnosticar doenças, preparar e indicar remédios caseiros. Os atendimentos de saúde realizados pelos raizeiros se dão, geralmente, no próprio domicílio em que residem, onde também preparam os remédios caseiros.
Conforme a especialidade do raizeiro, ele pode receitar um remédio pronto, dar a receita para a pessoa preparar o remédio em casa, ou ainda, entre outras coisas, indicar dietas e banhos. O atendimento pode ser gratuito, cobrado em dinheiro ou trocado por outro bem qualquer.
O trabalho dos grupos comunitários é conhecido pela eficácia de seus tratamentos e exercício de uma prática de saúde confiável e solidária. Uma das principais características desse trabalho é o acesso das pessoas aos remédios caseiros, que são vendidos a baixo custo ou doados a quem não pode pagar.
O Brasil detém em seu território uma inestimável biodiversidade, com cerca de 24% do total de plantas superiores existentes no mundo. Além desse patrimônio genético, o país destaca-se como detentor de rica diversidade cultural e étnica.
Embora a atual legislação sobre acesso a conhecimentos tradicionais associados, patrimônio genético e repartição de benefícios – Medida Provisória 2.186 – 16/01, explicite que os conhecimentos tradicionais associados são patrimônio cultural nacional, ainda há muito que se fazer para que esses sejam valorizados e respeitados por toda a sociedade brasileira: as políticas públicas devem de fato ser implementadas, para que assim se possa garantir a conservação da biodiversidade e permitir que as comunidades continuem a utilizá-la, perpetuando seus saberes.
Fonte: Sem Cerrado
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O povão rico daqui [da Chapada dos Veadeiros], o povo mais véi daqui, depois que conheceu os turista e eles pegou e vendeu as terra tudo e mudou pra lá …
Por Dona Flor do Cerrado

O povo foi todo daqui pra Brasília, Formosa, e agora tá doido pra voltar, mas o dinheiro que eles têm não dá pra voltar mais. Isso aqui era lindo demais, daqui cê escutava us índio tocando flauta ali. À noite, cê ia ver o movimento dus índio aqui.
Quando eles chegava lá [no Solarium], a gente sabia que eles chegou por causa do cocar. De galinha da angola, avuava tudo, a gente sabia que era eles que tava chegano. Os cachorro não latia. Eles largava dois latido e depois baixava o tom. A gente sabia que era eles.
Antes de ficar fazendo muito movimento praqui, lá em cima eles tocava lá, nós escutava aqui. Gaita é bunitu, bunitu. É terra deles, né? É terra dus índio, terra dus escravo. Isso aqui não era de ninguém. [Foi] depois que o povo tomou deles. Aí eles vão lá pro Amazonas. Vai vendeno as terra e eles vão [indo embora].
A história do Moinho [povoado de Alto Paraíso de Goiás] é uma história mesmo, não tinha cerca de arame, não tinha cerca de pedra, aqueles murão bem altão.
Pessoal andava a pé mesmo. Pessoa igual eu não tinha cavalo. E a gente vai ficano veia, o povo vai vendeno tudo. O povo aqui fazia cachaça, o alambique era bem ali na casa da Ceição, eu alembro que eu ia mais minha vó, ela trazia pano pra costureira fazer.
Até costureira tinha fixa aqui, tinha costureira que só costurava pra homem, agora tinha as outra que fazia pras muié. Dona Maruca fazia pra homem e pra muié. Fazia terno, xadrez. Era bom porque as muié fiava, fiava algodão, tingia linha, a outra ia fazia o tecido, a outra cortava, fazia os mutirão.
Quando uma muié tava nos dia de ganhá o neném e ela tinha que fazer a roupa porque não tinha roupa, aí as otra muié juntava todo mundo e ia fiá pra ela. Aí quando ela ganhava o neném, [e o] neném já tava engatinhando, ela voltava pra fiá pras muié. Ia uma pagano a outra.
E a vida foi indo, foi conhecendo pano, otrus tipo de pano, confoi um pouco veio a roupa feita e agora cabô, as muié não sabe mais ninguém cortar, não sabe costurar, não sabe fiá, não sabe tingir uma linha, não sabe fazer um novelo de linha, não sabe nada. E por isso veio o preço que veio, cê compra uma roupa hoje, cê põe lá na máquina pra lavar, daqui a pouco tá tudo desfiado.
Naquele tempo que as muié fazia renda, fazia tricô, muié fazia isso, fazia aquilo, hoje não tem mais nada. Hoje pra cê ver um pé de algodão no quintal precisa ser parteira, se não for, não planta mais. Aí depois foi ficano assim (…).
Eu tive meus 18 filhos assim, eu sofri muito. Eu não tinha terra, eu não tinha casa, porque no meu tempo qualquer casa era casa. Fazia uma casinha de palha, não tinha nem fogão, fazia umas de pedra.
Às vezes a gente ficava até debaixo dos pau, pé de angico, pé de braúna, pé de aroeira, pé de tingui. Debaixo a gente varria tudo, e aí a gente ficava uma de lá, outra de cá e botava um pau atravessado no meio, acendia o fogo debaixo e aí pegava as panela e enfileirava assim, o fogo ficava debaixo.
E ali quando não tava chovendo ficava era tempo. Quando a chuva se iniciava, corria lá no mato pegava uma palha dobrava assim, só pra dormir. Não tinha como fazer, não tinha nada. Não podia fazer uma casa na terra dos otrus. Porque se a gente fizesse a casa, a gente era posseiro, aí o dono não aceitava. Aí às vezes ele dava permissão pra gente fazer.
Aqui pro [povoado do] Moinho, eu já mudei pro que é meu. Eu lutei, lutei, comprei um terreno, comprei uma casinha velha de palha que eu agradeço a Deus até hoje. Só tinha adobe no fogão.
Comprei essa casa com fumo, que é o que ocêis chama de tabaco, frango, ovo, sabão de tingui, farinha, polvilho, gergelim, aí matei um porco, vendi também e fiz o negócio.
Eu morava na mata, e eu já tinha muito filho na mata, e eu queria pôr meus filho na escola. A gente foi mudano de um lugar pra otru. Até que o homem que me criou e eu fui lá e pedi pra que ele me desse um pedaço de terra que eu precisava fazer uma roça, criar meus filho, que eu precisava de ter uma coisa pra mim vender, pra eu vim pra cá e pra botá os meus filho na escola. Que ele viu que não estudei e que eu queria que meus filho estudasse.
E ele falou assim:
– Olha, eu vou lá pra mim ver essas terras.
Aí ele mandou um rapaz pra vim ver essas terras, aí eu mostrei onde eu queria, queria perto do rio, mas não muito perto. Aí ele deu pra mim a terra aqui, meu marido acabou de criar mais ele, eu acabei de criar mais ele, então ele já conhecia nós, nós trabalhava pra ele. Aí ele mandou plantar meia.
– Não, meia não, eu tem muito fii, cobra renda, cê tem muita terra.
– Tá bom, então assim no meu controle, se cê colher dez sacos de arroz, um é meu, nove é seu.
(…) Aí fui roçar a roça, botou fogo nessa roça, queimou tudo, aí foi meu marido, muntuou os pau pro fogo não passa pro otru mato, fazia aquela cercona assim, aí botava fogo e queimava, eu já ia ali já panhava a cinza já guardava lá no cestão pra fazer sabão. E foi crescendo assim…
Dona Flor do Cerrado – Florentina Pereira Santos, erveira, raizeira e parteira cerratense, falecida em 09/08/2023, aos 85 anos, em O partejar e a farmacopeia de dona Flor – História e ensinamentos de uma mestra quilombola, organizado por Juliana Floriana Toledo Watson, editora Avá, 2022.

DONA FLOR DO MOINHO É HOMENAGEADA APÓS A MORTE
“Em uma noite estrelada, a flor retornou à terra”. Foi dessa forma que a morte de Dona Flor do Moinho foi comunicada em suas redes sociais.
A parteira e raizeira que vivia no povoado de Moinho, na Chapada dos Veadeiros (GO), morreu esta semana aos 85 anos. “Todas as flores que ela semeou germinaram e germinarão”, concluiu o post, feito no perfil oficial de dona Flor.
Segundo ela, dona Flor do Moinho costumava dizer que é preciso colocar mulher grávida pra plantar porque elas têm vida nas mãos. “Tá com vida nela toda e a planta sente”, dizia, de acordo com o relato da fotógrafa. Isabelle acredita que a parteira e raizeira cumpriu sua missão. “Tomara que a gente consiga ter a sabedoria de seguir todos os seus conselhos”, finalizou.
A jornalista Mara Régia fez uma homenagem à dona Flor do Moinho no programa Viva Maria, da Rádio Nacional. “Justo quando se prepara para fazer florir margaridas no chão de Brasília, uma flor muito especial acaba de deixar o chão de sua terra para viver a eternidade dos céus”, disse, fazendo referência à Marcha das Margaridas, que acontece na próxima semana na capital federal.
“Tive o prazer de conhecê-la pessoalmente quando em uma visita à Chapada dos Veadeiros, onde agora ela descansa em paz”, contou Mara, ao citar o que dona Flor do Moinho deixou por escrito para que fosse colocado em sua lápide:
“Quando eu morrer, não quero choro. Quero todo mundo alegre. Já vivi o que tinha que viver. Já fiz o que tinha que fazer. Cumpri minha missão aqui na terra. Na minha morte, a única coisa que quero é perdão e água. Porque gerei na água, vivi minha vida toda na água e não quero morrer com sede”.
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Por Eliana Feitosa
Em Alto Paraíso, muitos são os lugares intocados, com pouca ou nenhuma interferência humana, santuários ainda preservados. Dentre eles encontra-se o Povoado do Moinho.
Situado a 12 km da cidadezinha de Alto Paraíso, entre nativos e chegantes, no Moinho vivem pouco mais de 200 pessoas, em sua maioria afrodescendentes (maior concentração do município) que preservam seus modos de vida e tradição desde os tempos em que fugiram da escravidão.
O Moinho está localizado no coração da Chapada dos Veadeiros, às margens do Rio São Bartolomeu, afluente do Rio Paranã, na bacia do Rio Tocantins. Perto dele passa o Rio Preto, afluente do São Bartolomeu, que alimenta a cachoeira Anjos e Arcanjos, principal atração turística local.
O historiador Luiz Lima, profundo conhecedor da geografia e história da Chapada dos Veadeiros, descreve o lugar com riqueza de detalhes:
“Na grande curva que custeia a serra, descortina-se, a norte, o grande e profundo Vale do Moinho, com vila minúscula e escondida no arvoredo de quintais frondosos. Lá em baixo, já na cota mil, os sítios com singelas casinhas de adobe, evocam sutis encantamentos. Nesta panela férica e temperada, o rio São Bartolomeu, pra lá e pra cá, vai intercruzando as pontes do caminho, banhando como Nilo benfazejo, as terras que outrora vicejou pepitas de ouro, e depois dourados trigais. ”
DONA FLOR
Dona Flor do Moinho, 78 anos, mãe de 18 filhos paridos, e de outros criados, conta que já realizou mais de 300 partos.
Aos nove anos de idade, já preparava chás e efusões sob a orientação da mãe. Teve todos os seus filhos de parto normal, em casa, e cuidou de si mesma e de outras mães com os preparados de ervas e plantas do Cerrado.
Sobre esse conhecimento, dona Flor explica: “Aprendi tudo olhando, sempre fui muito curiosa, queria saber o que acontecia quando a mãe ia ganhar a criança, logo me ofereci para ajudar, era tudo muito normal. Tive meus filhos só, logo, uso muito o barbatimão, é a planta da mulher, não pode tomar muito não, mas antes de engravidar ele limpa tudo e depois do parto cicatriza. ”
Descendente de negros que se estabeleceram há muitas décadas na região, onde encontraram refúgio e condições de vida no Cerrado, dona Flor faz parte dos Quilombola que vivem Moinho, descendentes de escravos e de índios do tronco Macro-Jê.
Segundo dona Flor, a grande herança de seus ancestrais é o conhecimento tradicional, fruto da união dos povos indígenas e negros, oriundos da escravidão, muitos deles servidores dos garimpos durante a corrida pelo ouro que ocorreu na região.

AS FONTES DE CURA DE DONA FLOR
A economia no Povoado do Moinho está diretamente ligada às belezas do lugar e à comercialização de produtos como artesanato, verduras orgânicas e preparados como xaropes e garrafadas da medicina tradicional, objeto de procura de pessoas vindas de diversas partes do Brasil e o mundo que visitam o povoado.
O Cerrado é alimento e cura, fonte de renda e lazer. Nessas comunidades cada indivíduo desempenha um papel importante para o grupo, sempre respeitando as lideranças, os mais velhos, traço dos costumes repassados pela ancestralidade e pelo harmonioso convívio que estabelecem.
A qualidade da água que alimenta rios, córregos e cachoeiras do Moinho alimentam também uma fração de Cerrado com características medicinais peculiares. O Rio Pretinho que alimenta a horta e os cultivos nos quintais nutre espécies de várias potencialidades terapêuticas.
O conhecimento tradicional em meio a uma sociedade que considera a natureza elemento comercial, subjugada e cuja finalidade é o lucro, tende a desaparecer caso não haja intervenções de manutenção da comunidade tradicional no campo e valorização da sabedoria ancestral.
A origem das plantas medicinais utilizadas nas preparações de remédios caseiros é muito diversificada: elas são cultivadas ou coletadas no Cerrado, doadas por pessoas conhecidas, adquiridas através de troca por remédios caseiros, ou ainda compradas em mercados ou raizeiros.
Todos possuem indicação, modo de usar e composição, mas é na cuidadosa orientação de Dona Flor que os adoentados mais confiam. Entre os remédios manipulados da farmácia instruções e receitas de diversos chás, emplastos, efusões que tem as plantas do Cerrado como princípio ativo.
AS CIÊNCIAS DE DONA FLOR
A coleta das ervas, plantas do Cerrado revela o ritual de respeito e reverência à natureza, representa o conhecimento indígena que foi repassado aos negros africanos que se refugiaram no lugar, sobre a forma de coletar plantas “do mato” para fazer os remédios.
Dona Flor explica: “Para buscar as plantas primeiro você prepara o coração e o espírito para trabalhar a natureza. Você não pode retirar uma folha, casca ou flor da floresta se você estiver com mal humor ou raiva senão a planta morre.”
Proteger comunidades tradicionais é perpetuar o bioma e as espécies que nele vivem. O Cerrado, berço das águas, necessita de uma legislação que valorize o “preservar” acima do desmatar para desenvolver, cultura implantada na década de setenta no Centro Oeste.
As comunidades tradicionais remanescentes de quilombola que vivem na região da Chapada dos Veadeiros são o exemplo da convivência harmônica do homem com o Cerrado. O Cerrado é alimento, é cura e é vida. Assim pensa a cerratense dona Flor.
Eliana Feitosa – Mestranda em Geografia pela Universidade de Brasília. Licenciada em Geografia pela UEG – Formosa. Pedagoga e Teóloga. Pesquisadora de Comunidades Tradicionais. Este artigo é fruto das pesquisas de campo para a Dissertação de Mestrado – Identidade e Cultura: estudo etnogeográfico da comunidade tradicional do Moinho em Alto Paraíso/GO, ocorrida entre 2015 e 2016.





