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Rincão do Inferno: Paraíso ecológico do Pampa Gaúcho resiste contra mineração

O nome não combina com o que os olhos veem. Não fosse a discreta placa feita à mão anunciando a chegada ao Rincão do Inferno, qualquer um poderia pensar que o lugar de solo inóspito de pedras, cactos e vegetação rasteira é, na verdade, um paraíso. O apelido do lugar vem justamente da inospitalidade da terra, doada à família de um escravo no passado e que hoje faz parte do território quilombola das Palmas. Situado no alto de um cerro de paisagens fascinantes às margens do Rio Camaquã-Chico, na divisa entre Bagé e Lavras do Sul, o Rincão do Inferno tem hoje apenas três moradores fixos. Onélia Franco Marques, o marido, Alcíbio Franco, e o irmão dele, Enildo Franco.

“Nós nem sabemos direito quem foi o proprietário que deu isso aqui pra gente morar. Como aqui era um lugar que não tinha valor, nos deram e nós ficamos. Vou ficar sempre aqui, se Deus ajudar”, diz Enildo, descendente de Felicíssimo Alves Franco, escravo que morreu há quatro décadas. Ele conta que se dedica a fazer serviços para os vizinhos e cultiva uma pequena horta para consumo próprio. O morador não cria animais porque não gosta de “tirar a vida dos bichos”. Nas palavras, revela uma ligação forte com o local e com a natureza. “De primeiro, a gente vinha aqui e só de linha tirava um monte de peixes. Agora está raro. Pode analisar, é por causa desses venenos”, sentencia.

Onélia Marques não pretende deixar a região. Foto: Fábio Quadros

“Para mim, é o paraíso”, defende Onélia, neta do escravo Anastácio Franco. Ela vestia a camiseta do movimento Unidade Pela Preservação do Rio Camaquã durante a entrevista. Onélia, a família e grande parte dos moradores do distrito de Palmas são contrários ao projeto de exploração de metais pesados na região proposto pela Votorantim no ano passado. “Quero continuar no paraíso”, diz, ao justificar o posicionamento contrário.

Onélia fez aniversário no dia 14 de novembro e abriu as portas da casa para receber a família e comemorar seus 80 anos no domingo (19). A churrasqueira de chão estava funcionando e os convidados se aglomeravam em rodas de conversa com os jovens mochileiros que ocupavam o camping da propriedade e os ativistas do movimento contra a instalação da nova mina, do qual Onélia faz parte. Família, campistas e ativistas passaram boa parte do domingo unidos para celebrar a matriarca e rejeitar a volta da mineração.

Os integrantes do movimento participaram de um seminário no sábado em Bagé e organizaram uma visita ao Rincão do Inferno no dia seguinte. Eles estão mobilizados desde meados de 2016 para evitar que a região volte a sofrer as consequências de uma mineradora. Assim explica Márcia Collares, funcionária pública que viveu até os 12 anos de idade nas terras da família na região.

Visita ao Rincão do Inferno teve protesto contra a mineração. Foto: Fábio Quadros

“Sabemos que toda a região será afetada e por isso estamos protestando”, afirma. Segundo Márcia, o selo de produto sustentável conquistado pelo Alto Camaquã corre risco com a vinda da mineradora. “Nós aprendemos a conviver com o meio ambiente, produzir de forma sustentável, é só olhar ao redor e ver que está tudo preservado”, diz.

No final dos anos 80, um transbordamento de produto químico, provavelmente de mercúrio, de uma mina de exploração de ouro mudou a cor da água do rio e causou mortalidade de peixes. “Hoje em dia, o Camaquã é um rio vivo novamente. Quando a água está clara nós avistamos os cardumes passando. Hoje o rio conseguiu se recuperar. Então, nós perguntamos: agora que o rio está recuperado vão voltar a investir em mineração?”, questiona Márcia.

Ex-funcionário das Minas do Camaquã, Airton Brignol conhece bem esse episódio. “Eles usaram mercúrio e estavam largando no arroio de Lavras. A água do Camaquã ficou cinza. Abaixo das minas, depois de um tempo, as piavas estavam flutuando na água”, conta. Sobre o projeto de retomada da exploração mineral na região, ele faz um alerta: “Dependendo do que eles usarem para a separação (do que for extraído), pode fazer um mal horrível, poluir o Camaquã de liquidar com tudo.”

Hoje aposentado, Airton trabalhou por 10 anos na exploração de cobre na localidade de Minas de Camaquã. Perguntado se considera a profissão perigosa, ele mostra duas cicatrizes (uma na cabeça, outra nas costas) deixadas por acidentes de trabalho. Um problema com uma broca fora de controle num dos túneis numa ocasião, e atingido por uma pedra durante uma explosão em outra.

Rincão do Inferno foi reconhecido como território quilombola. Foto: Fábio Quadros

Território quilombola

No Rincão do Inferno o tempo passa devagar. Os processos que envolvem a área parecem acompanhar o ritmo. O reconhecimento como território quilombola saiu este ano pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) após mais de dez anos em processo.

Onélia diz que o reconhecimento “significa muito”. Ela lembra que passou “muito trabalho” vivendo no Rincão do Inferno, mas na última década as coisas começaram a melhorar com a chegada da luz elétrica e da água encanada. Assim, o lampião deu lugar às lâmpadas e a descida diária até o Camaquã para buscar água, tarefa executada pelos mais velhos dos 11 irmãos de Onélia, foi substituída por uma bomba que abastece as casas. “Eu fui nascida e criada aqui e sou feliz aqui”, sentencia a moradora.

Agora, a área faz parte do Quilombo das Palmas junto com outras três localidades da região, e falta apenas o reconhecimento através de decreto presidencial para autorizar as desapropriações, fixar a área como comunidade quilombola e, assim, permitir apenas que os descendentes de escravos vivam no local. O Incra identificou que 23 famílias descendentes de escravos vivem na região. Só que um outro relatório, citado pelos proprietários que contestam o reconhecimento, afirma que 19 famílias não descendem de escravos. Segundo o Incra, “estas contestações já foram analisadas e superadas”.

Se a luta contra a mineração une todos naquela região, a questão envolvendo a propriedade da terra do quilombo ainda gera desarmonia. Os três moradores do Rincão do Inferno não querem deixar o lugar e lutam pelo reconhecimento do quilombo. Mas em conversas informais, alguns vizinhos se manifestam contrários. Eles temem que, com o reconhecimento como quilombo, a área seja mais explorada pelo turismo. “Há uma resistência contra o turismo na região”, relata um. Outro alega que demorou a tomar posição, mas não concorda com o processo sob o argumento de que “tiraria a terra dos outros”.

Foto: Fábio Quadros

ANOTE:
Fonte: Sul 21
Foto: Fábio Quadros
 
 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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