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O MUNDO XAMÂNICO DOS APURINÃ

O MUNDO XAMÂNICO DOS APURINÃ

O mundo xamânico dos Apurinã – Parte II: Os Kusanaty e os rituais – o Ritual do Kyynyry

O Kyynyry ou Xinagné é o principal ritual do Apurinã. Reúne moradores de várias aldeias para, juntos, festejarem a passagem do espírito de quem faleceu; é também a ocasião de refazer as alianças entre pessoas, aldeias e grupos inimigos. 

Por Francisco Apurinã

Os Apurinã ainda mantêm viva a tradição desse rito e, durante os dias de festa, os participantes se enfeitam com as cores da floresta, expressa em suas pinturas corporais e nos mais variados adornos e indumentárias.

Os grafismos são traçados com a tinta do urucu e jenipapo, traduzidos nas malhas da hãkyty (), do xutuiu (jabuti) e da kiãty (cobra jiboia). Esta última é mais indicada para as e as demais para os homens.

Entre os muitos significados, tais pinturas indicam o grupo clânico ao qual a pessoa pertence, o que ela pode ou não comer e com quem pode casar-se.

Durante o mês que antecede a festa, são formados grupos de homens para caçar e pescar; enquanto isso, as mulheres preparam kumery (beiju), katarukiry (farinha) e diversos tipos de vinhos e bebidas:

de tipary (banana), katarukyry (), kẽmi (milho), kawiry (pupunha), quitity (patoá), kauakury (bacaba), tsaperiky (açaí) e kỹnhary (buriti). Nos dias de festa, os alimentos são servidos em grandes kutary (paneiros) para os convidados de outras aldeias.

Vale destacar neste rito a importância da presença do kusanaty. Para melhor ilustrá-la, apresento a pescaria com tingui (timbó) sob a luz da sustentabilidade política local, a qual, entre outras coisas, desconstrói percepções errôneas que muitos não Apurinã têm a respeito do tingui.

Durante a pescaria, o kusanaty não entra na água, fica sempre calado, observando sentado na margem do igarapé. Quando a pesca se inicia, ele orienta os demais, dizendo: “quem pegar o primeiro peixe deve assoprar três vezes na boca do pescado para a pescaria ser de fato produtiva”.

Quando ele percebe que já foi pescada a quantidade de peixes suficiente para alimentar os convidados, imediatamente, pede para encerrarem. Em seguida, adentra a floresta e cospe três vezes em “cruz” na direção do sol nascente. A partir desse momento, cessa o efeito do tingui sobre os peixes e tudo volta ao normal.

Como foi mencionado, esse ritual também serve para refazer as alianças entre pessoas, aldeias e grupos inimigos. Assim, antes de iniciar a festa, dois grupos inimigos, ambos armados de lança, arco e flecha, vindos de lugares opostos, se encontram no centro do terreiro para “cortar o sãkyré”.

Ali, os tuxauas de cada grupo proferem palavras ofensivas contra o outro para demonstrar quem é o mais valente. Além disso, é necessário que cada um diga o nome do seu pai e de seu avô para que se saiba a qual família pertence, bem como suas relações de parentesco.

No auge do debate, o kusanaty convida os dois líderes para tomar awiry na sua mão e então, finalmente, os guerreiros chefes selam a paz, se abraçam (mas nem sempre acabou em festa; contam que em datas anteriores terminava em sérios conflitos) e caminham em direção ao terreiro para dar início à festa. O ritual somente é concluído no terceiro dia pela manhã, quando todos contemplam o nascimento do sol.

Considerei relevante, para melhor entendimento do leitor, abordar esses fatos sobre os Apurinã antes de mergulhar no mundo de magia dos kusanaty, para mostrar que sua atuação não se restringe apenas a causar (“jogar”) doenças e a curar pessoas.

Seu conhecimento lhes permite transitar em todas as vertentes por que se move este povo, sem falar que seus poderes sobrenaturais permitem dialogar com os animais, com as plantas, com as rochas e com seres que habitam outros mundos.

O MUNDO XAMÂNICO DOS APURINÃ
Imagem: Reprodução/Crônicas Indigenistas

 Os Kusanaty Apurinã

Começo esta caminhada de descobertas estabelecendo um diálogo entre os princípios básicos da cultura Apurinã e o saber misterioso dos kusanaty, ressaltando algo que ouvi recentemente de meu pai, Katãwyry.

No rigor de seu conhecimento, o que ele me disse serviu, dentre outras coisas, como objeto de reflexão e como motivação para a produção deste texto: “Sou curado pelos kusanaty.

Eles cumpriram quando me disseram no ritual do kamaty que jamais me abandonariam e mesmo em sonho recebo sua visita quando estou doente.

Há mais ou menos uns cinco anos, fiquei muito adoentado, achei até que ia morrer, estava sem força e sem coragem para fazer qualquer coisa.

Essa doença já durava alguns dias, e até o momento não havia recebido nenhuma visita dos pajés. Isso me deixava inquieto, pois nunca havia acontecido isso.

Certo dia, eu dormi profundamente e finalmente recebi a primeira visita, mas um grande buraco em forma de abismo me separava dele. Isso impossibilitou que chegasse onde eu estava, mesmo assim, ele e outros que vieram em dias diferentes tentavam me curar de longe, mas tais tentativas não resultaram em nada; enquanto isso, eu continuava muito doente.

Depois de alguns dias, finalmente apareceu Maruky (meu avô) também do outro lado do abismo, mas antes que eu percebesse como havia feito para ultrapassar o grande buraco, ele surgiu do meu lado e me curou. Antes de partir, afirmou que eu havia descumprido algo de seus ensinamentos e assim, do mesmo jeito que apareceu, também foi embora.

Passei algum pensando no que meu avô tinha me falado, mas somente anos mais tarde consegui compreender que o descumprimento a que ele se referiu tinham sido os diversos medicamentos de farmácia que eu havia tomado”.

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Imagem: Reprodução/Crônicas Indigenistas

O processo de iniciação dos Kusanaty 

Agora, sigamos a fala de Katãwyry sobre o processo de iniciação dos kusanaty.

Vale destacar que a indicação do futuro pajé fica sob a responsabilidade de um “forte” , quando o escolhido ainda é criança.

Quem indica será também o seu “guia espiritual”, o qual vai lhe conferir poderes durante o processo de iniciação.

A criança é identificada por um sinal inscrito em seu ou por um tipo de choro que emite ao nascer. Tais sinais somente são percebidos por um qualificado pajé.

A primeira prova que o iniciante deve enfrentar é passar um longo período na mata, jejuando, comendo muito pouco, passando (inalando) awiry e mascando folha de ktsupary.

Ao voltar à aldeia, deve manter-se recluso numa casa distante das demais e se abster de muitas coisas praticadas pelas outras pessoas no dia a dia, principalmente, relações sexuais.

Durante esse período, sua única companhia é seu guia espiritual, sua é preparada e servida por uma já idosa, preferencialmente de parentesco bem próximo para não lhe despertar nenhum desejo sexual ou algo dessa natureza.

A floresta é o cenário escolhido para a realização das provas destinadas aos futuros kusanaty que, dentre outras finalidades, visam ensiná-los a controlar o medo, o que lhes permitirá a aquisição de arapani, pequenas pedras xamânicas responsáveis pela atribuição de poderes sobrenaturais, posteriormente utilizadas para curar, causar doença e até matar.

Tais pedras são dadas ao xamã por kiãty (cobra jiboia), hãkyty (onça pintada) e também pelo seu guia espiritual, momento em que se estabelecem relações entre o iniciante e esses seres. Sobre esse momento, vejamos o que ensina Raimundo Pequeno Apurinã, mais conhecido como “Pirata”:

“Aproximava-se da meia noite quando a pedra que estava dentro do corpo do futuro pajé (meu tio Kaiãbety), em fase de iniciação, lhe avisou que a onça caminhava em sua direção e pediu que ele fizesse o que o seu guia espiritual tinha lhe orientado.

Imediatamente ele se preparou e, quando a onça chegou bem perto, ele chupou várias vezes na testa do animal e, antes de lhe entregar seu arapani, a onça disse que ele ainda não possuía poderes para curar qualquer tipo de doença, por isso, precisava receber outras pedras”.

A seguinte análise de Katãwyry torna mais aguçada minha reflexão sobre xamãs e o poder xamânico:

“Antes da entrega do arapani, tanto a onça como a cobra se transformam em gente e convidam o futuro pajé para passar awiry em sua mão, o mesmo não pode ter medo, pois eles não são ‘bichos’, pelo contrário, são velhos pajés que estão ali efetivamente para protegê-lo e lhe conferir poderes, por isso, não devem ser vistos como animais”.

Este e outros depoimentos aqui apresentados mostram como humanos e animais vivem em constante estado de metamorfose, assumindo o corpo um do outro a fim de gerar “poderes”, dentre outras manifestações.

O MUNDO XAMÂNICO DOS APURINÃ
Imagem: Reprodução/Crônicas Indigenistas

 

CRÉDITOS: Este texto é excerto editado por Jairo Lima (cronicasindigenistas)  com autorização do autor, do artigo: O MUNDO XAMÂNICO DOS APURINÃ: UM DESAFIO DE INTERPRETAÇÕES, publicado originalmente na “Série Antropológica do Departamento de Antropologia da UNB”, em 2017.

As imagens desta publicação foram selecionadas por Jairo Lima e são da autoria de: 1 e 2:  Moara Brasil; 3. Iraê Beck. A imagem de capa é de Koka Veras.

 

O MUNDO XAMÂNICO DOS APURINÃ
Imagem: Arquivo Pessoal
Francisco Apurinã é doutorando em antropologia pela  Universidade de Brasília (UNB). Possui uma trajetória de trabalhos junto aos povos no Acre e Noroeste do Amazonas, tendo atuado tanto pelo Governo do Acre quanto pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Atualmente encontra-se atuando profissionalmente em Santa Inês – MA, trabalhando no subprograma Fortalecimento Cultural, no âmbito do Plano Básico Ambiental (PBACI) dos povos Guajajara, Awá-Guajá e Kapó.
 

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

revista 119

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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