“Sabe, Sancho, todas essas tempestades que acontecem conosco são sinais de que em breve o tempo se acalmará e que coisas boas têm de acontecer; porque não é possível que o bem e o mal durem para sempre, e segue-se que, havendo o mal durado muito tempo, o bem deve estar por perto.” (Miguel de Cervantes em Dom Quixote).
Dom Quixote e Sancho Pança: um exercício de louvor à amizade: Relação entre os personagens da obra de Miguel de Cervantes é analisada em artigo da professora Maria Augusta da Costa Vieira/USP
A revista Literatura e Sociedade traz artigo da professora Maria Augusta Vieira sobre Dom Quixote de La Mancha, também conhecido como “o cavaleiro da triste figura”- personagem principal da obra homônima de Miguel de Cervantes – e a complexa relação de amizade e aprendizado entre ele e Sancho Pança, cavaleiro e seu escudeiro. Segundo a autora, essa amizade “pode ser entendida como um exercício de louvor à amizade, algo tão valorizado em toda a obra cervantina”.
Paralelamente, o artigo põe em pauta referências sobre os primeiros estudos sobre a possível formação intelectual de Cervantes, informações sobre sua biografia e alguns dos princípios poéticos vigentes na época, norteadores de sua narrativa. Se a imaginação permeia toda a narrativa, a reflexão crítica caminha junto, “ou seja, por meio da leitura da obra, o leitor usufrui não apenas do que se narra, mas também de como se narra”.
Em relação à biografia de Cervantes e suas próprias orientações sobre seus escritos, a autora diz que não há declarações explícitas a respeito. Até seu retrato, estampado em várias edições de sua obra, talvez não represente o semblante verdadeiro do escritor espanhol.
A certeza que se tem, para a professora Maria Augusta, é a facilidade de Cervantes em criar “laços de extrema simpatia que estabelece com seu leitor, convertendo sua escritura em momentos primorosos de reflexão e entretenimento”, que nos toca até hoje.
Na obra, os múltiplos usos da linguagem, convertidos no fazer poético, são objeto de diálogos e discussões das personagens, em que também a arte da narrativa se torna um tema, chamando a atenção do leitor, não apenas sobre “o que se narra, mas também sobre o modo de narrar”, ou seja, ”o que hoje poderíamos entender como sendo um diálogo entre verdade poética e verdade histórica”, explica a autora.
Apesar das divergências, Dom Quixote e Sancho Pança se respeitam e admiram-se mutuamente: se encontramos no livro as loucuras do cavaleiro, também encontramos “as situações mais admiráveis”; se encontramos as previsíveis prudências de Sancho, também encontramos “as mais verossímeis” – sobretudo, há, na história, momentos impagáveis de amizade, ensinamento e de convivência entre as duas personagens. Sancho desiste de convencer seu cavaleiro de que “moinhos não são gigantes, carneiros não são exércitos, estalagens não são castelos”.
Mas no decorrer da trama, Sancho, um lavrador rústico, vai ganhando autoconfiança “e fica mais senhor de sua ação”, sendo capaz de inventar para seu amo o inquietante relato sobre o encantamento de Dulcinéia, a amada do cavaleiro, que, de uma “dama etérea” se apresenta como “uma rústica lavradora”.
Por sua vez, Quixote se preocupa com a formação de seu escudeiro quanto ao modo de “agir, de pensar e sobretudo no que se refere a seu modo de falar”. “Sancho a cada momento se mostra mais preparado para enfrentar as agruras da vida de escudeiro de um cavaleiro andante muito singular” que, no final das contas, proporciona-lhe uma vida muito animada e alegre.
Um dos momentos em que a amizade entre ambos se evidencia é quando Sancho, em um diálogo com uma senhora aristocrata – a duquesa – manifesta sua total fidelidade a Dom Quixote, mesmo que isso ponha em risco o tão almejado governo de uma ilha, algo que ele sempre desejou.
Essa relação de amizade, fiel e sincera, aparentemente inviável, entre um intelectual e um analfabeto, constitui, na realidade, o eixo a partir do qual surge uma série de aventuras, diálogos e conversações entretidas, indagações sobre a escrita, sobre diferentes gêneros literários, sobre a própria obra, sobre o que vem a ser verdade poética e verdade histórica, construindo, assim, uma narrativa complexa e surpreendente, em que realidade e sonho se mesclam tão perfeitamente, assim como a arte se integra na vida.
Maria Augusta da Costa Vieira – Professora titular de Literatura Espanhola do Departamento de Letras Modernas (FFLCH-USP), pesquisadora do CNPq e detentora do “Prêmio Jabuti”, em 2013, pela publicação de A narrativa engenhosa de Miguel de Cervantes: estudos cervantinos e recepção do Quixote no Brasil. mavieira@usp.br. Margareth Artur / Portal de Revistas USP. Matéria extraída do Facebook da Thâmar de Castro Dias em março de 2022.