Siricoté

SIRICOTÉ: A DANÇA DAS TRÊS PRETINHAS DA GUINÉ

Siricoté: a dança das três pretinhas da Guiné

Para Thiago e Aurélio, dois poetas do Andirá Barreirinha era, então, um pequeno povoado molhado pelas águas verdes e ainda não poluídas do Andirá – o rio dos índios Mawé, onde dona , a mãe de , muitos anos antes, lhe dera o primeiro banho. Tinha menos de mil moradores, uma igrejinha, o grupo escolar, a sede da prefeitura e duas únicas vias. A “Rua da Frente” contemplava o rio.

Por José Ribamar Bessa Freire/TaquiPraTi

A “Rua Detrás” olhava a e a campina com suas palmeiras de tucumã-piranga e capins altos que dançavam um balé verde-amarelo farfalhando ao sabor do vento. SiricotéFoi esta “Princesinha do Andirá” que viveu dias de glória em agosto de 1961 na festa solene da padroeira Nossa Senhora do Bom Socorro, quando recebeu a visita pastoral de Dom Arcângelo Cerqua, um napolitano de 44 anos, guloso, com barba farta, recém-nomeado bispo prelado de Parintins, cuja fama de cantor, compositor e poeta se espalhara pelo baixo Amazonas. Esse Pavarotti de igarapé, enquanto se ensaboava no banheiro da Prelazia, costumava cantar “O Sole Mio”, com sua voz estrondosa que despertava a inveja dos puxadores de toada do Garantido e do Caprichoso.

  • Temos que receber o bispo com dança memorável e opípara – decretou o prefeito de Barreirinha, Aurélio Andrade, em reunião da comissão organizadora para definir a programação oficial e o menú. Convinha paparicar o prelado, porque Barreirinha havia dado o seu grito do Ipiranga, digo, do Andirá, emancipando-se de Parintins politicamente, mas não eclesiasticamente.
  • “Teatro” – sugeriu dona Alice, a primeira dama, propondo a encenação de uma peça contando a história da cidade, cuja é a Missão de Andirá, fundada em meados do séc. XIX pelo capuchinho de Ceriana, que “tratava os índios com o despotismo de um régulo” e retornou podre de rico para a Itália, “carregado de avultado pecúlio”, segundo fofocou Frei Bernardino de Souza em suas “Lembranças e Curiosidades do Amazonas” (1873). Na peça haveria, padres, comerciantes, índios e negros.

As três pretinhas aurelio e alice

Um dilema: quem interpretaria o índio Crispim de Leão, que se rebelou, incendiou a Missão e morreu assassinado? Em toda Barreirinha, apenas dois atores tinham o physique du rôle: um era Thiago de Mello, que já havia embarcado de mala e cuia para o Rio de Janeiro. Sobrava Cordeiro, irmão do prefeito, mas foi descartado por sua atuação desastrosa em peça sobre a guerra civil espanhola que quase acaba em tragédia.

Ele representou Satanás na luta contra o Anjo e, ao soltar chamas pela boca cheia de querosene, tocou fogo na própria roupa e teve de sair correndo, iluminado, para se atirar no Andirá, cujas águas apagaram o incêndio do homem-bomba. Incendiário frustrado, brincava com fogo, mas não era capaz de tocar fogo na Missão. Foi aí que dona Alice teve uma ideia genial para solucionar a falta de atores:

  • Vamos encenar o Siricoté, a dança das três pretinhas da Guiné.

Seria fácil encontrar as pequenas atrizes. Quem interpretaria as crianças negras? Buscaram em Matupiri, no Andirá, onde se refugiou no séc. XIX o angolano escravizado Benedito Rodrigues da Costa. Mas a comunidade, desconfiada, recusou o convite, porque conhecia versão racista do Siricoté, cuja letra dizia que “as três pretinhas da Guine encontraram o amigo chimpanzé”.

Aurélio lhes explicou pacientemente que a variante de sua proposta era outra: combatia o racismo e denunciava os maus tratos dispensados aos negros escravizados. De nada adiantou. O prefeito respeitou a recusa e diante do impasse escolheu suas próprias filhas para representarem as pretinhas da Guiné: Fátima (11 anos), Magela (10) e Bernadete (8). Na regra três, Paula Frassinete (7).

A melodia era a mesma que recebera tratamento violonístico do maestro Guerra Peixe, numa versão que fala de Peixinhos da Guiné, registrada por Guilherme Neves em Cachoeiro de Itapemirim (ES). A letra, embora lamente “a perda do que era bom na África, é cantada, porém, com muita animação”, como assinala Maria Inês Almeida, que pesquisou o véu da invisibilidade da negritude.

A direção do espetáculo era do próprio Aurélio e o figurino da dona Alice. O bispo e a capivara Chegou, enfim, o grande dia. Sentados na primeira fila os convidados de honra: o bispo, o padre Santis, a irmã Antonieta e a professora Jeny do Grupo Escolar Padre Seixas, as autoridades civis, eclesiásticas e até militares – um sargento da PM. As três meninas subiram ao palco com o corpo inteirinho pintado de carvão, trajando vestidos de organdi-bangu, com botões de várias cores, debruns com viés coloridos, costurados por dona Alice na sua máquina Singer. Modelitos de papel celofane e enormes laços na cabeça completavam o figurino, que dava realce aos olhos. Com passinhos saltitantes, começaram a dançar e cantar:      

                                                                                                                           I Siricot%C3%A9 Guerra Peixe 2Eu lá na minha terra, vivia como rainha.  Aqui na terra dos brancos, eu só vivo na cozinha. Oi siricoté, oi siricoté, as três pretinhas da Guiné. II Eu lá na minha terra, dormia num colchão 

Aqui na terra dos brancos, passei a dormir no chão. Oi siricoté, oi siricoté, as três pretinhas da Guiné III Eu lá na minha terra, comia tanta galinha. Aqui na terra dos brancos, passei só a comer farinha. Oi siricoté, oi siricoté, as três pretinhas da Guiné Ninguém jamais foi tão ovacionado em Barreirinha.
 
Os aplausos ecoaram pelo Andirá e Paraná do Ramos. “É como se eu estivesse” – exagerou o bispo – “no Teatro Scalla de Milão e não na casa do prefeito”. Disse isso durante o almoço, quando convidou as “três pretinhas” a se apresentarem em Parintins, enquanto devorava avidamente a “pièce de résistance” –  um bife de capivara com arroz branco e polenta temperado com pimenta do reino, cominho, colorau e cebola, que só dona Alice sabia fazer, além, é claro, de deter o segredo para tirar o cheiro desagradável do bicho.

Com fama de glutão e de raspa-tacho, o bispo se atracou com a capivara, comeu metade dela e ainda papou quatro vezes a sobremesa imbatível de cupuaçu, cujo creme salpicou sua barba de arame-farpado, numa imagem que não foi registrada devido à inexistência de máquina fotográfica em Barreirinha e de não coincidir com a passagem do regatão que tirava foto e a vendia num monóculo. negra Siricoté Aurélio não está mais entre nós, mas ele e Alice deixaram sementinhas da flor da solidariedade plantadas nos corações das filhas. As suas pretinhas da Guiné saíram afora dançando o siricoté, duas delas já na outra dimensão. O carvão nunca mais saiu da pele delas. Magela que, com os anos enegreceu sua alma, mergulhou fundo nas comunidades quilombolas do Andirá como pesquisadora do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, talvez o projeto mais sério de toda a Amazônia nesse campo, coordenado por Alfredo Wagner de Almeida, que orientou sua tese de doutorado.

Quilombolas do Rio Andirá é uma publicação organizada por eles dois dentro do Projeto Mapeamento Social como instrumento de gestão territorial contra o desmatamento e a devastação, destinado à capacitação de povos e comunidades tradicionais. A essa publicação se somou o livro com relatos de Maria Amélia dos Santos Castro, líder da Federação dos Quilombos do Andirá, cinco dos quais já reconhecidos pela Fundação Palmares.

Por causa desse reconhecimento que lhes garante a terra, Maria Amélia, bisneta de escravo, está sofrendo ameaças de pistoleiros do agronegócio, na medida em que o Rio Andirá, pelo potencial de recursos naturais, se tornou grande atrativo para madereiros e pecuaristas, que criaram conflitos no momento em que foram notificados pelo Incra sobre a retirada do território quilombola. Ela completa 58 anos no próximo dia 13 de maio. É uma mulher de fibra. Mãe de oito filhos, morou um tempo em Manaus, vendendo doces nas ruas e adornando porta-guardanapos com tampinhas de garrafa pet.  Concluiu o curso de de Jovens e Adultos (EJA) e retornou ao caminho da roça.

  • Ser quilombola é questão de orgulho… Ninguém mais se envergonha de ser negro – ela disse.

A parte sadia do Amazonas não pode permitir que ataquem a nossa pretinha angolana do Andirá. Oi Siricotá! Oi Siricotá! Somos todos pretinhas do Andirá. P.S. Bibliografia: 1) Ranciaro, Maria Magela Mafra de Andrade. Os cadeados não se abriram de primeira: processos de construção identitária e configuração do território de comunidades quilombolas – Município de Barreira/Am. Tese de Doutorado. UFAM. 2016 2) Amélia, Maria: Trilhas percorridas por uma militante quilombola: vida, luta e resistência! Rio. Casa 8, 2016. 3) Almeida, Alfredo W. e Ranciaro, Magela (orgs) – Quilombolas do Rio Andirá. Manaus. UEA. 2014 4) Dados sobre Guerra Peixe e o Siricoté estão em Corradi Jr, Cláudio José: César Guerra-Peixe: suas obras para violão. 

Dissertação de Mestrado. ECA-USP. 2006 Dados sobre o Siricoté podem ser encontrados também na dissertação de Maria Inês Almeida defendida em 2014 na Federal do Ceará. Fotos: Magela Ranciaro, Rosselini Tavares, Emmanuel Farias Jr,  Armando Cajueiro e Alex Ximango Fonte: http://www.taquiprati.com.br/cronica/1394-oi-siricote-os-quilombolas-de-barreirinha

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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