Só filho biológico

Só filho biológico vale para ser pai ou mãe?

Só filho biológico vale para ser pai ou ?

Em um dos retrocessos dos valores democráticos mais macabros desde a volta da democracia no Brasil, a Comissão de Previdência, Assistência Social, , Adolescência e Família da Câmara dos Deputados, através da bancada evangélica, aprovou um de lei que proíbe o casamento homoafetivo há dias atrás. Neste texto, irei abordar um dos tantos argumentos medíocres utilizados para sustentar o discurso que possibilitou tal retrocesso: “O casamento entre pessoas LGBTQIAPN+ não é natural, já que essas pessoas não podem se reproduzir através do coito”.

Por Juan Manuel P.Domínguez/Mídia Ninja

Defensores da tal “família tradicional brasileira” (que na real não passa de um estereótipo heteronormativo) utilizam há anos a tal de “não aptidão biológica para a procriação” como recurso retórico para deslegitimar os casamentos entre pessoas não heteras. Essa forma de terrorismo simbólico estaria deslegitimando também, claro está, os matrimônios de pessoas heterosexuais que, de uma forma ou outra, se veem imposibilitados de ter filhos através do mero ato sexual, e que precisam recorrer a outras vias como inseminação artificial, fertilização in vitro, ou até a adoção para ser parte da experiencia de procriação.

Vale esclarecer, talvez, que quem escreve essas linhas é pai biológico. E resulta muito claro para quem escreve essas linhas que a paternidade biológica não define o caráter de ninguém, não realiza ninguém como homem e não faz da paternidade algo mais especial ou legítimo do que outras formas de paternidade.

A paternidade, como tudo o que acontece na nossa , é meramente circunstancial, e seu sentido está associado aos aspectos individuais que acompanham a existência de cada indivíduo. E para que se entenda um pouco melhor isso, poderíamos trazer à tona palavras do escritor e jornalista argentino Enrique Symns.

Ele traz uma reflexão importante sobre a nossa natureza como espécie. Ante a possibilidade da raça humana se extinguir por causa da poluição ambiental ou talvez diante de uma iminente batalha nuclear, o que faria do nosso fim algo “não natural”, Symns responde: “Mas não há nada mais natural para o ser humano que se extinguir dessa forma, porque você esperaria um fim similar ao dos dinossauros ou as espécies da era do gelo?

Nós nos caracterizamos desde sempre pela manipulação da natureza, mas essa nossa manipulação é parte também da natureza toda, do no qual nascemos. Somos parte orgânica do mundo, manipulá-lo está na nossa caraterística como espécie.

No final, o nosso papel aqui é criar coisas mais complexas que o ninho que um pássaro cria. As bombas nucleares e as fábricas que expelem fumaça são feitas com elementos que extraímos da natureza e que manipulamos a partir de algo que é próprio ou ‘natural’ a nós, a nossa capacidade de produzir ”.

Toda a da qual hoje dispomos faz parte da nossa natureza. Não é produção de alienígenas, não é fruto de espíritos extraterrestres. São seres humanos (heteros, LGBTQIAPN+) os autores de todos os avanços em questão de combate às que são mortais para outras espécies, de reprodução assistida, de clonação.

Se é aceito como natural, ou normal, as pessoas irem ao médico para curar problemas cardíacos, respiratórios, que em outras épocas teriam lhes condenado à morte, então também deve ser considerado normal, natural, inerente, ou como você queira chamar, a reprodução assistida de qualquer forma. Ser pai ou mãe (mas eu vou me focar na paternidade) é uma forma de sentir a vida, a vida de um outro.

Ser pai é sentir a cada momento a responsabilidade de proteger e cuidar de uma outra vida, e ser feliz com isso. E essa vida não necessariamente precisa ter vínculos biológicos com a sua. É muito importante parar o terrrorismo simbólico dos fundamentalistas religiosos que hoje, infelizmente, ocupam uma porção importante do parlamento no Brasil.

É incrível como eles não percebem como essa forma de terrorismo afeta diretamamente aquilo que eles dizem defender. Cercear o amor é cercear a fé. Diminuir o amor alheio é diminuir a fé própria. Então sim, casais homoafetivos, LGBTQIAPN+, todos, todos podem ser pais ou mães, ou algo que não seja tão binário. Um filho adotivo ou nascido in vitro não têm menos legitimidade que um filho biológico.

Filhos não biológicos não são filhos artificiais. Nós humanos, como espécie, somos inerentemente produtores de cultura, de campos simbólicos, de leis. E tudo isso sai de seres humanos, logo, tudo é parte da nossa natureza, inclusive o horror que qualquer um de nós conseguiria repudiar. Confesso que, sendo pai biológico, enxergo um viés maior de nobreza naquele que se decide a ser pai ou mãe não tendo os recursos biológicos para sê-lo. Pais e mães que recorrem à fertilização assistida, casais LGBTQIAPN+.

Mas é importante salientar, para finalizar, que ninguém é obrigado a ser pai ou mãe para se realizar na sua passagem pela vida. Essa é uma escolha que cada um deve fazer consigo mesmo. Não é para completar a representação de uma família “funcional” que a paternidade ou maternidade existem. Quem sabe, no , compreendamos que precisamos tirar esse olhar estereotipante de peças publicitárias e narrativas, para liberar o peso da marginalização daqueles que não se sentem identificados com esse quadro.

Toda forma de paternidade ou maternidade é natural, é humana, logo, é válida sempre que baseada no amor e na responsabilidade diante da vida que nos é confiada. Escolher isso todo dia, desde o primeiro, é parte do processo. Num mundo onde tantas são abandonadas, por motivos diferentes, nada mais necessário que aqueles dispostos a assumir a responsabilidade de amar aqueles que pais biológicos não conseguiram proteger.

Fonte: Mídia Ninja Capa: Pixabay

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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