Remédio de Índio: Ciência testada nos saberes da vida
Em uma briga entre lagarto e jararaca, a cobra leva a melhor. A picada dela o deixa fraco, perto da morte. Mas ele é esperto: foge da briga e corre atrás de remédio. Mastiga umas folhas e dias depois fica forte novamente.
Por Carol Castro/Superinteressante
O índio, na espreita, acompanha todo aquele processo. Se alguém for picado por uma jararaca, ele corre em busca daquela mesma planta mastigada pelo lagarto. Primeiro, testa o remédio. Se der certo, a planta entra na lista de medicações daquela aldeia. Foi assim que, ao verem animais machucados roçando em uma árvore, os índios descobriram o poder cicatrizante do óleo de uma árvore chamada copaíba, por exemplo.
O acúmulo de conhecimento se dá ao prestar atenção nas semelhanças entre formatos e cores das plantas e as doenças que elas combatem. Por exemplo, a madeira amarela de um tipo de abútua, uma trepadeira, e a seiva amarelada da caopiá, árvore também chamada de pau-de-lacre, são usadas para curar doenças no fígado.
Os índios repararam em outros detalhes, como no látex que sai da casca de algumas árvores. Exposto ao ar, o líquido parecia um verme. Logo, aquele podia ser um bom remédio para lombriga. “As formas indígenas de classificar remédios naturais são sofisticadas”, diz Maria Luiza Garnela, médica e antropóloga da Fundação Oswaldo Cruz na Amazônia. “Envolvem cheiros, identificação de resinas e semelhanças e diferenças entre plantas”.
Claro que nem toda semelhança dava certo. Esther Jean Langdon, professora de antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina e especialista em saúde indígena, diz que era assim que se aprendia. “Eles observam o que funciona. Fazem essa comparação com a natureza, mas testam para saber se dá certo”, explica. “É nesse sentido que eles têm uma ciência, não com experimentos em laboratórios, mas na vida”.
A enfermeira Patrícia Rech, professora de saúde indígena na Universidade Federal de São Paulo, viveu no Parque do Xingu, em Mato Grosso, por cinco anos. Ela presenciou um exemplo disso. Certa vez, acompanhou um parto problemático.
A placenta não saía, seria preciso aumentar as contrações. Mas não havia nenhum medicamento, e a farmácia mais próxima ficava a horas de distância. Assim que souberam do problema, as mulheres da aldeia correram mata adentro. Voltaram com um punhado de plantas nas mãos. Amassaram as folhas e deram o sumo para a paciente. Em meia hora, a placenta, enfim, saiu. Sem a ajuda de nada mais.
NA SUA GAVETA. E ALÉM
Olhar para a ciência indígena pode ser o caminho mais curto para a produção de novos medicamentos. “Quando se parte de um conhecimento tradicional, usualmente, encurta-se pela metade o tempo necessário para fabricar um novo remédio”, diz o médico Clayton Coelho, que atua no projeto Xingu, da Unifesp.
Uma pesquisa da Universidade da Paraíba analisou 23 especiarias usadas popularmente como remédios antimicrobianos. Depois de avaliar os efeitos, 40% das plantas tiveram suas propriedades comprovadas. Isso porque nenhum conhecimento surge do nada, sem qualquer embasamento.
É por isso que os cientistas não descartam medicamentos indígenas. E não estamos falando de tratamentos fitoterápicos, que estão no balaio dos tratamentos alternativos. Megahits das farmácias e blockbusters das receitas médicas têm herança popular.
É o caso da aspirina, que saiu da casca do salgueiro. Na Europa, o médico Hipócrates já receitava o chá com a casca e folhas da árvore para amenizar febres e dores de cabeça. Os índios americanos a utilizavam para o mesmo fim (e para muito mais: reumatismo, calafrios e dores musculares). Para transformar salgueiro em aspirina, a ciência isolou o ácido salicílico, aprendeu a sintetizá-lo e transformou a droga no analgésico mais popular do mundo.
Já o jaborandi, árvore típica das regiões Norte e Nordeste, oferece os colírios de pilocarpina, que os índios usam há séculos para estimular a produção de suor. Por muito tempo, os médicos brasileiros (e alguns europeus) indicaram o remédio com o mesmo objetivo. Mais tarde, a ciência descobriu um efeito mais poderoso da pilocarpina: ela também funciona no tratamento de glaucoma.
Já remédios químicos que tratam arritmia e insuficiência cardíaca devem sua vida a uma planta ornamental de flores em forma de sininhos, a dedaleira. O chá dessa planta era feito pelos índios nativos dos Estados Unidos para um distúrbio na circulação do sangue que causa insuficiência do coração.
A lista é longa e se estende a outros continentes. Pesquisadores da Universidade do Sul da Califórnia tentam aproveitar os conhecimentos das parteiras africanas. Elas usam o chá de uma erva de flores violetas, a Oldenlandia affinis, para aumentar as contrações uterinas. E dá certo. Não à toa, os cientistas estudam modos de viabilizar a produção de remédios com kalata B1, composto proteico da planta.
O próximo passo é encontrar na natureza possibilidades de cura para nada menos que o câncer. Pesquisadores da Unicamp isolaram e sintetizaram componentes do óleo da copaíba, aquela dos poderes cicatrizantes citada no começo da reportagem. Deixaram os compostos em contato com células cancerígenas de vários tipos (ovário, próstata, rins, cólon, pulmão, mama, melanoma e leucemia). “Mostrou potencial como anticancerígeno”, diz o químico Paulo Imamura, orientador da pesquisa.
Infelizmente, a ideia não saiu do papel, por falta de tempo e dinheiro. “Seria necessária uma longa pesquisa sobre como preparar em grande escala”, completa. Nos EUA, outros pesquisadores estudam a eficácia do melão-de-são-caetano, muito usado contra doenças de pele. Apesar do nome, trata-se de um cipó. E agora, com testes em ratos, o estudo comprovou que o extrato da planta realmente ajuda a reduzir sinais de tumor.
Não se trata de uma via de mão única. Há – e sempre houve – intercâmbio de informações, mesmo que desfavorável à cultura indígena. Índios pernambucanos fazem, hoje, ritual de cura com aspirina na lista de remédios. Práticas tradicionais perdem espaço para a medicina moderna. Mas elas se adaptam. Como em Santa Catarina, onde o povo Kaingang, de Chapecó, rebatizou uma espécie de artemísia que tem efeitos antifebris. Deram a ela o nome de novalgina.
Carol Castro, Jornalista. Excerto de matéria publicada no site da revista Superinteressante, publicada originalmente em 20 de dez de 2018