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Sob bandeiradas, um acorde aos miseráveis

Sob bandeiradas, um acorde aos miseráveis

A ideia de miseráveis lembra massa ferrada, sem vez, sem voz; população seduzida por nulidades viciadas na politicagem e enriquecidas à custa do analfabetismo social e da sobre oprimidos…

Por Fátima Guedes

A atual realidade experienciada no do Estado Democrático de Direito nos reporta à obra Os Miseráveis, de Victor Hugo, publicada em 1862, quando monarquistas e republicanos franceses disputavam nas ruas a condução dos espaços sociais de poder. No desenrolar da obra, Jean Valjean, protagonista da obra, paga ao sistema monárquico preço altíssimo, durante toda a vida, por um erro cometido na juventude.

Além de outros estigmas, o personagem também incorpora a fragilidade de uma classe social excluída, desmerecida e ao mesmo tempo impotente para agir e reagir contra as manobras de um sistema autocrático, com vieses fascistas. Em decorrência, a mesma classe oprimida sente-se no dever de pagar com subserviências e bajulações pelas migalhas, pelas sobras, pelos descartes vomitados por senhores engenhosos.

Sob a perspectiva do escritor, Valjean fora transformado num eterno devedor daquele sistema desumanamente dominante, por ter cometido na juventude um “desvio de conduta”, segundo os códigos monárquicos da época. Em princípio, “o erro” do condenado nada mais é que um direito à livre expressão de ser quem na verdade era e desejava.

Um olhar problematizador sobre nossa brasilidade traz similares cujo pontapé inicial acontece no processo colonizatório: a invasão dos portugueses às terras tupiniquins mascarada de “descoberta”; a equivocada independência celebrada em sete de setembro; a implantação do modelo republicano, assim como outros marcos celebrados historicamente a partir das manipulações do colonizador. As referências em pauta comprovam as razões do imenso vazio participativo e interventivo da população colonizada, alienada – questão que nos leva a afirmar: evoluímos enquanto massa de manobra, seres manipuláveis; no entanto, ignoramos a autonomia, digital que nos reconhece senhor e senhora de si.

Entre outras imposições colonialistas impossível esquecer: a cruz cravada no coração da Mátria; a anchietização sobre a e sobre a ética das populações nativas, incluindo flora e fauna; o sistema escravagista até hoje vigente e mascarado como democrático republicano; além de outras e outras materialidades genocidas praticadas para com a Mãe Gentil.

Considere-se a provocação deste mergulho crítico sobre a realidade concreta da comunidade brasileira: ao mesmo tempo em que nos revela características e aspectos destrutivos durante os processos ditos civilizatórios, se oferece também como despertar libertador à construção da soberania citada em nossa Carta Magna. É notório ainda que a dormência centenária em que se encontra a grande maioria da população é fruto de artimanhas democracidas religiosistas, alinhadas entre si, sob propósito de produzir miseráveis configurados em pecadores – os imperdoáveis devedores a uma ordem pública controladora de liberdades, direitos e deveres civis.

Sob a mesma percepção, os Miseráveis referendados por Victor Hugo são a maior parte de nossa população, em total vulnerabilidade e desvantagem de direitos. Em termos figurativos, a ideia de miseráveis lembra massa ferrada, sem vez, sem voz; população seduzida por nulidades viciadas na politicagem e enriquecidas à custa do analfabetismo social e da exploração sobre oprimidos – painel da realidade brasileira. E mais, fora de períodos eleitoreiros (dois em dois anos), miseráveis analfabetizados amontoados nas periferias silenciam as dores cotidianas e se submetem ao anestésico da tortura institucionalista: fome, miséria, sistema de e de moradia indignos, ensino caótico, precariedade de saneamento básico e transporte, condições e acessos injustos a emprego/… E por aí vai. Ainda atribuem o volume de açoites à vontade de deus.

Chegamos à corrida eleitoral! Momento ápice para impulsionar o mercado do voto… Multidão de miseráveis deixa os casebres à mercê da ou da desgraça e vai às ruas: não em protesto às injustiças sistêmicas, aos abusos de poder, à vida indigna carregada até então; ao contrário, a multidão de miseráveis, em grande maioria , engrossa fileiras, arrisca-se como pedinte, como mendigos de direitos negados, os eternos devedores da ordem institucional… E lá se vão os miseráveis bajulando corruptos, sacudindo bandeiras, aumentando o lixo socioambiental com cartazes e informativos desprezíveis… Tudo isso em troca de centavos desviados dos cofres públicos… Há ainda outros miseráveis na fila com menos perspectivas – os neobárbaros do tráfico. São muitos…

Nesse instante, a Social retumba no céu da Pátria: que respaldo jurídico têm os miseráveis explorados durante as campanhas eleitoreiras?

Antes que o tempo físico me silencie, entrego este anúncio/denúncia ao coletivo sadio que mantém resistência na luta por Liberdade, Autonomia e Bem-Viver Universal.

Em remate: há 230 anos, a França celebra de fato e direito Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Já, no Brasil, apesar de toda a discursalha de progresso, o Estado Democrático de Direito mantém a original desordem colonialista de 522 anos sob a mira do fuzil e da crucificação de miseráveis servis.

A imagem que abre este artigo é uma a partir de imagem de Floriano Lins e mostra cabos eleitorais em um “bandeiraço” nas ruas de Parintins.

Fátima Guedes – Educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Uma das fundadoras da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (ANEPS). Autora das obras literárias, Ensaio de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage, e Organizadora do Dicionário – Falares Cabocos. Matéria publicada originalmente no site https://amazoniareal.com.br/.

http://xapuri.info/encontrado-fossil-dinossauro-penudo/
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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

revista 119

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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