Tal mãe, tal filha: Identidade de gênero no Universo Feminino
No Facebook, uma foto com personagens felizes. Mãe e filha. Mãe maquiada até o último centímetro das pontinhas dos cílios, e do lado dela, de rostinho colado, a filha, de no máximo quatro anos, também maquiada. O intuito era fazer esses paralelos de “Tal mãe, tal filha”. Foi algo apavorante.
Nas vitrines virtuais e no mundo real têm de tudo. Mas o que me fez falar sobre essa imagem, foi a finalização da leitura do artigo da professora Edma Góis, “Entre muros e abrigos: o lugar de corpos femininos no romance contemporâneo”, que analisa, entre outros, o grande romance Solo feminino, da excepcional escritora Livia Garcia-Roza.
Edma Góis destaca a seguinte fala de Gilda, protagonista do romance:
“Fui me preparar. Demorei para escolher o que usar, quase todas as minhas roupas são curtas, leves e transparentes; é o que importa, construir uma ilusão de nudez, mas nessa manhã queria algo forte, que estourasse na tela, acabei optando pelo meu vestido de seda violenta (sic), esse é direto e impactante, e colo bonito combina com decotão… Batom escarlate, blush, base em pó líquida, sombra dourada, rímel, lápis de sobrancelhas e contorno dos olhos… A ordem é brilhar! Me maquiei, escovei os cabelos até meus dedos não mais aguentarem, calcei sandálias plataforma (elevar o corpo aos píncaros dos olhares) e nas orelhas enfiei argolas douradas”.
Segundo Edma o “trecho deixa claro o esforço das mulheres (e não só da personagem Gilda) para se encaixar na personagem feita especialmente para o seu gênero. O esforço para caber no espaço de feminilidade que lhe é apropriado é o comedimento e também o lugar de silêncio para outras corporalidades, outros modos de existir socialmente”.
Gilda uma mulher, que foi criança, assim como a menina da foto que vi na rede social, foi no espaço privado de casa, no espaço restrito e privado de casa, ensinada a criar um personagem o qual deveria ser apresentado no espaço público. Todavia, com o passar do tempo, ela passou a viver um conflito com esse estereótipo de gênero, com esse modo seu de representação aprendido e a cada tentativa de ruptura com ele, a cada tentativa de silenciá-lo recebia uma coerção social, principalmente por parte da mãe, que a emoldurou num quadro de feminilidade que, segundo Virgínia Maria Vasconcelos Leal “pode trazer adoecimento […] em especial às mulheres […] que chegam a criar uma linguagem fraturada num terreno marcado pela falta de comunicação”.
Eu fico impactada profundamente com as mãos que estão nas rodas. Principalmente quando tudo aponta para a multiplicação cada vez mais de determinados movimentos. Compartilho, assim e por isso, outra experiência que vivenciei e que canaliza minha inquietação.
Foi no sábado passado (12/11). Estava numa livraria, aqui de Brasília. Uma mulher procurava quase que desesperadamente por um livro infantil. Já sem saber o que tirar da estante, chamou uma funcionária. Esta mostrou um livro com uma personagem, produto de mercado bem atual e falou “Esse aqui vem com um cenário enorme pra criança montar e é de princesa. As meninas adoram. Tá na promoção R$99,00”. A mulher encantada: “Olha que bacana, acho que vou levar!”.
Nítido está no discurso da vendedora toda a questão da construção da identidade de gênero bem acentuada, enraizada e escrachada e de deixa arrematamos logo e também o comportamento “vai com as outras” da mulher de audição senso-comum. O eco do discurso é poderoso.
Então, a intrometida aqui começou a sondar. Cheguei junto à mulher e indaguei: Quantos anos tinha a criança. Se ela a conhecia. Se sabia se os responsáveis tinham o hábito de ler para a criança. “Você sabe que o livro tem que ser livro e lido e não brinquedo”, etc. Um das primeiras respostas que tive foi “Bem, eu acho que ela gosta de ler, afinal eu a incentivo, sou professora dela”.
Cheguei a visualizar meus olhos crescidos de espanto e meu queixo caído sob nossos pés. Passado a mistura de susto e revolta, afinal estava diante de uma colega-professora, eu comecei a sugerir alguns livros. Foi “um pra cá e um pra lá” bem duradouro esse nosso. Mas, ela não quis saber de mim, nem de minhas sugestões.
Talvez deva ter pensado que eu fosse uma professora dinossauro, dessas que não falam a linguagem das crianças e adolescentes, dessas professoras chatas e formatadas. Eu percebia sua indiferença, porém insistia. Eu pensava era na presenteada.
Aí ela vinha com um livro musical e uns com bonecos e canetas e me perguntava, com um sorriso simpático e até meio orgulhosa com sua descoberta “Será muito infantil?” Eu já querendo saber a ficha corrida e curricular dela, silenciei. Vale dizer que currículo não chega ser a prova viva de olhar crítico realmente construtivo.
No final, ela decidiu por um embrulho-livro que vinha com um conjunto de maquiagem e disse “Achei, vou levar esse. Elas AMAM. Na hora do intervalo, elas vivem se pintando”.
Olhei para ela e disse “Boa sorte!” e fui ter com Bárbara, minha filha, que sobre uma mesinha já separava os livrinhos dela. E disse para mim, mas não em silêncio:
– Agora é a minha vez e que res-pon-sa-bi-li-da-de!
Foto: pinterest.com
ANOTE AÍ: