THIAGO DE MELLO: MADRUGADA CAMPONESA

Madrugada Camponesa

Thiago de Mello

Madrugada camponesa,
faz escuro ainda no chão,
mas é preciso plantar.
A noite já foi mais noite,
a manhã já vai chegar.

Não vale mais a canção
feita de medo e arremedo
para enganar solidão.
Agora vale a verdade
cantada simples e sempre,
agora vale a alegria
que se constrói dia a dia
feita de canto e de pão.

Breve há de ser (sinto no ar)
tempo de trigo maduro.
Vai ser tempo de ceifar.
Já se levantam prodígios,
chuva azul no milharal,
estala em flor o feijão,
um leite novo minando
no meu longe seringal.

Já é quase tempo de amor.
Colho um sol que arde no chão,
lavro a luz dentro da cana,
minha alma no seu pendão.
Madrugada camponesa.
Faz escuro (já nem tanto),
vale a pena trabalhar.
Faz escuro, mas eu canto
porque a manhã vai chegar.

Thiago de Mello – Poeta maior do Brasil e da Amazônia. Capa: Portal do Amazonas. 

Thiago de Mello 20 aMAZI A REAL
O Bem-Te-Vi de Thiago de Mello 
O bem-te-vi que me perdoe, mas há momentos matinais em que seu canto chega a incomodar, repetindo com insistência que me viu, que me viu…
São muitos, um repete a cantiga do outro. Mas tudo é perdoável, pela beleza do peito amarelo e a raja branca que lhe vai do bico, passa entre os olhos e atravessa a cabeça.
É tremendamente machista: dá bicadas na fêmea em pleno voo, quando está louco por ela.
Do que mais gosto nele é a valentia: investe furioso contra o gavião que lhe quer tirar os filhotes do ninho. Não espera o ataque. Sai ao encontro do rapineiro, que encolhe as garras.
Thiago de Mello – Poeta Maior da Amazônia, em “Amazonas: Águas, Pássaros, Seres e Milagres”. Salamandra, 1998.
Thiago de Mello: Poeta da Resistência
Por Kleytton Morais
Thiago de Mello, o grande poeta da Resistência, partiu deste mundo em 14 de janeiro de 2022, aos 95 anos. Escreveu muito,  lutou muito, sonhou muito, fez do verso arma do esperançar. Dele e nosso. Como legado, nos deixou  “Os Estatutos do Homem”,  escrito no Chile, no mês de abril do ano de chumbo de 1964, como sua expressão mais profunda de crença na humanidade. Nós, do Sindicato dos Bancários de Brasília, nos somamos à Revista Xapuri nas homenagens ao imortal Thiago de Mello.
 OS ESTATUTOS DO HOMEM (Ato Institucional Permanente)
Thiago de Mello
A Carlos Heitor Cony
 
Artigo I – Fica decretado que agora vale a verdade, que agora vale a vida, e que, de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo II – Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
Artigo III – Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra; e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança.
Artigo IV – Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem, que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu.
Parágrafo único – O homem confiará no homem como um menino confia em outro menino.
Artigo V – Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa.
Artigo VI – Fica estabelecida, durante os séculos da vida, a prática sonhada pelo profeta Isaías, e o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
Artigo VII – Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada da alma do povo.
Artigo VIII – Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama sabendo que é a água que dá a planta o milagre da flor.
Artigo XIX – Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal do seu suor. Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura.
Artigo X – Fica permitido a qualquer pessoa, a qualquer hora da vida, o uso do traje branco.
Artigo XI – Fica decretado por definição que o homem é o animal que ama e que por isso é belo, muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII – 
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido. Tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com imensa begônia na lapela.
Parágrafo único – Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.

Artigo XIII – 
Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou.
Artigo Final – Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas. A partir deste instante, a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem.
Kleytton Morais – Presidente do Sindicato dos Bancários Brasília. Membro do Conselho Editorial da Revista Xapuri. Foto: Acervo TaQuiPraTi. 
THIAGO DE MELLO: POETA DA RESISTÊNCIA

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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