Pesquisar
Close this search box.

Tuíra, Ritxoko e uma “Justiça terrena”

Tuíra, Ritxoko e uma “Justiça terrena”: a propósito de pensar a(s) representação(ões) da Justiça

O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno.”

(Clarice Lispector – Mineirinho).

Por Isabella Alves

A representação da Justiça como Justitia ou Lady Justice – uma mulher branca, com olhos vendados e às vezes carregando uma espada –, ainda é uma marca comum e popular da cultura jurídica em muitas partes do mundo, desde os tribunais aos desenhos animados (BRANCO, 2017, p. 63). Propus-me, no entanto, a refletir sobre outras formas de representar a justiça, arrancando de discussão acerca dos crimes cometidos pelo Estado a partir do colonialismo, e da necessidade de se reforçar a concepção da justiça enquanto reivindicação – consideradas as dimensões do reconhecimento e da redistribuição (Honneth, 2003; Honneth, Fraser, 2003). O esforço remeteu-me, desde logo, à lembrança da célebre fotografia de Tuíra (Imagem 1).

Mulher indígena da Região Norte do Brasil que empunhou seu facão ao então diretor da Eletronorte – que representava, na ocasião, a ameaça das usinas hidrelétricas sobre os territórios dos povos indígenas do Xingu –, Tuíra faz recordar a América enquanto “primeiro espaço/tempo de um padrão de poder de vocação mundial” (Quijano, 2005, p. 126),  alvo dos “esforços do colonialismo” para incutir, no seio de suas populações indígenas, a perspectiva de que a sua história anterior era “dominada pela barbárie” (Fanon, 1961, pp. 220-222). 

Mas não só isso. O retrato faz pensar/imaginar Tuíra como um sucedâneo de Justitia. No lugar da espada, o facão em riste, olhos e boca bem abertos e, em vez da balança, seu próprio corpo de mulher e indígena, símbolo e expressão do território, além de território em si mesmo

A imagem evoca uma compreensão da precariedade enquanto exposição diferencial, por parte de algumas populações, ao dano, à violência e mesmo à morte (Butler, 2018, p. 37), sem que se esqueça que a natureza humana comum repousa, primordialmente, não na autonomia, como pretende o ideal do “sujeito liberal” (Fineman, 2019, p. 356), mas na vulnerabilidade compartilhada, em maior ou menor grau, por todos e todas (Turner, 2006, p. 9). E, sobretudo, convoca a uma justiça intercultural, voltada a uma “partilha comunicativa” de valores e ideias (CANOTILHO, 2003 p. 1434), aberta a “práticas e experiências socioculturais plurais e diferentes daquelas defendidas e impostas pela perspectiva que se totaliza” em benefício de determinados grupos (RUBIO, 2018, p. 33).

A divagação fez recordar, ainda, Ritxoko, boneca fabricada pelas mulheres da etnia indígena Carajá, trazendo à mente a mobilização da figura de Tuíra por meio da cerâmica, da argila e do barro, como uma expressão de memória coletiva e de resistência cultural frente ao colonialismo que segue vivo até os dias atuais. É de se lembrar, para além, que a lógica do capitalismo, outra forma de dominação e violência ontológica (Santos, 2018, pp. 226-227), incide sobre a justiça, por exemplo, desde a ênfase para uma espécie de privatização da solução dos litígios, reflexo de um contexto mais amplo, que se traveste de emancipação social, a partir da ideia de autocomposição.

Nesse cenário, a imagem radical de Tuíra como símbolo da justiça vai ao encontro da necessidade de uma justiça mais acessível, o que passa por representá-la de modo a refletir compromissos novos e genuinamente radicais de tentar tornar mais disponíveis as formas de “justiça terrena” que estamos continuamente a reconfigurar (Resnik, Curtis, 2007, p. 183). Sim, uma justiça terrena, para além das abstrações. 

Imagem 1: Fotografia de Paulo Roberto Jares

Disponível em: https://oeco.org.br/salada-verde/autor-de-foto-historica-de-india-tuira-e-seu-facao-morre-aos-51-anos/ 

Imagem 2: Boneca Ritxoko

Disponível em: https://xapuri.info/ritxoko-a-boneca-de-barro-karaja/

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Branco, Patrícia (2017), “Exploring Justitia Through Éowyn and Niobe: On Gender, Race and the Legal”, Liverpool Law Review, 38/1: 63-82.

Butler, J. (2018). Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro, Brasil: Civilização Brasileira (recurso eletrônico).

Canotilho, J. J. G. (2003).  Direito constitucional e teoria da constituição (7. ed.). Coimbra, Portugal: Almedina. 

Fanon, F. (1961). Os condenados da terra. Lisboa, Portugal: Editora Ulisseia. 

Federici, S. (2017). Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante.

Honneth, A. (2003). A luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo, Brasil: Editora 34.

Honneth, A. (2003) & Fraser, N. Redistribution or Recognition?: A political-philosophical Exchange. New York, United States of America: Verso.

Lima, Nei Clara de; et al. Bonecas Karajá: arte, memória e identidade indígena no Araguaia. Dossiê Descritivo do modo de fazer ritxoko. Goiânia, Brasil: Museu Antropológico, Universidade Federal de Goiás, IPHAN, 2011.

Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e Amética Latina. E. Lander (Ed.). In A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina: CLACSO.

Resnik, Judith; Curtis, Dennis (2007), “Representing Justice: From renaissance iconography to twenty-first century courthouses”, Proceedings of the American Philosophical Society, 151/2: 139-183.

Rubio, D. (2018). Derechos humanos instituyentes, pensamiento crítico y praxis de liberación. Ciudad de México, México: Akal.

Santos, B. S. (2018). O fim do império cognitivo. Coimbra, Portugal: Almedina.

https://xapuri.info/elizabeth-teixeira-resistente-da-luta-camponesa/

Block

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

0 0 votos
Avaliação do artigo
Se inscrever
Notificar de
guest
0 Comentários
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários

Parcerias

Ads2_parceiros_CNTE
Ads2_parceiros_Bancários
Ads2_parceiros_Sertão_Cerratense
Ads2_parceiros_Brasil_Popular
Ads2_parceiros_Entorno_Sul
Ads2_parceiros_Sinpro
Ads2_parceiros_Fenae
Ads2_parceiros_Inst.Altair
Ads2_parceiros_Fetec
previous arrowprevious arrow
next arrownext arrow

REVISTA

REVISTA 113
REVISTA 112
REVISTA 111
REVISTA 110
REVISTA 109
REVISTA 108
REVISTA 107
previous arrowprevious arrow
next arrownext arrow

CONTATO

logo xapuri

posts recentes