UM FIO TEU NÃO FOGE À LUTA: O BRASIL ATRAVÉS DOS BORDADOS

Um fio teu não foge à luta: o Brasil através dos bordados

“Os cientistas dizem que somos feitos de átomos, mas um passarinho me contou que somos feitos de histórias”. (Eduardo Galeano. O Caçador de Histórias. 2016)

O deslumbramento foi tal que, mesmo com o tempo chuvoso em Niterói, levei as três netas para a Exposição Redescobrindo o Brasil em fios: 200 anos de histórias e memórias bordadas, inaugurada sábado (8 de novemro).

Por Geraldo Souza/TaQuiPraTi

Com curadoria de Ricardo Lima e Marisa da Silva, a exposição itinerante inspirada no Bicentenário da Independência do Brasil exibe criações de 28 artistas de 27 municípios do Rio, que me trouxeram remotas lembranças da dona Zulmira, vizinha do bairro de Aparecida, em Manaus, além de recuerdos mais recentes do Chile.

À tardinha, sentada na calçada em frente à sua casa no beco com esgoto a céu aberto, dona Zuzu enrolava fios com bilros – instrumento artesanal de madeira para trançar e fazer renda sobre uma almofada. Mas manteve a técnica em segredo, nunca ensinou a ninguém, talvez por isso Deus a castigou e ela demorou a namorar com seu Fiúza, funcionário do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), que a provocava cantando o conhecido xaxado do namoro de Maria Bonita e Lampião:

– Olê mulé rendeira, olê mulé rendá.

Dona Zuzu era rendeira, mas também bordadeira. Propiciou o meu primeiro contato com essa arte. Confesso que, após 70 anos, lembro da imagem por ela tecida de um fio de água amarelada correndo pelo beco diante de nossas casas cobertas de zinco.

O realismo da cena era tal, que a água no pano do bordado fedia. Mas o menino que eu era, achava aquilo desimportante. Levei décadas para descobrir a dimensão estética e política do bordado, que revela formas de exercer a cidadania e até de fazer política, indo muito além de sua função ornamental, que por si só já é digna de admiração.   

Arte subversiva                          

arpillera

Tal dimensão foi reforçada em setembro de 2023, no Chile, quando em caravana de ex-exilados brasileiros visitamos no Museu da Memória de Santiago uma exposição de “arpilleras” – técnica têxtil que usa para fins artísticos o tecido da serapilheira ou da juta, como fez Violeta Parra, arpillerista (bordadeira) de mão cheia, cuja obra representa cenas do cotidiano.

Já na ditadura de Pinochet, mulheres presas políticas bordaram em roupas velhas cenas da violência policial: prisões, torturas, sequestros e até assassinatos.

As peças chilenas, que eram distribuídas sorrateiramente por baixo dos panos, estimularam a ação popular na denúncia de violação dos direitos humanos com repercussão internacional.

“Esta arte desobediente e subversiva se revelou um exemplo de arte solidária em contexto de resistência comunitária e uma arma contra tempos sombrios” – escreve Thaís Brito, que destaca ainda sua função terapêutica: bordar exige concentração, o que apesar dos difíceis temas tecidos, trazia certa pausa na dor das mulheres encarceradas.

Guardadas as diferenças culturais e históricas, a exposição sobre o redescobrimento do Brasil que itinera por Niterói está antenada nesta direção. Um de seus curadores, Ricardo Gomes Lima, pesquisador de cultura popular e professor na Pós-Graduação em Artes da Uerj manifesta que as obras expostas são a expressão de nossas verdades e de nossos sonhos:

– “Muitos bordados assumem posicionamento político na denúncia das injustiças e no clamor por mudanças. Neste caso, agulha, linha, tecido, bastidor, tesoura, dedal, os chamados apetrechos do ofício e da arte do bordado, se juntam no discurso reivindicativo. Os registros imagéticos expõem um Brasil real e também ideal, uma nação de diversidades e múltiplas culturas e desigualdades”.

Vidas negras

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A exposição é um desdobramento do projeto “Fio às Cinco em Pontos” iniciado em 2020, quando foram realizadas mais de 370 rodas de conversas bordadas com artesãs do Brasil e do exterior, incluindo também alguns artesãos numa tarefa que sempre foi vista como feminina – segundo informa a outra curadora Marisa da Silva, bordadeira e arte educadora, para quem “o bordado é uma forma de expressão cultural que vem ganhando cada dia maior visibilidade, conquistando pessoas de distintas gerações”.

A geração das minhas três netas de 9, 11 e 15 anos já foi conquistada e começa a despertar para a arte do bordado, redescobrindo o Brasil numa mostra feita em espaço acanhado, mas aconchegante, na entrada da Clínica ITC Vertebral- Instituto TRATA, em Icaraí, Niterói, que dessa forma busca a saúde de seus pacientes, cuidando da mente e não apenas do físico. Gostei tanto da exposição, que vou tratar minha coluna lá. 

Os temas dos bordados são variados com referências ao patrimônio histórico, cultural e natural e “reforçam os vínculos de pertencimento ao território habitado: montanhas e vales, igrejas e cristos, castelos e palácios, estações de ferro, rios, casarios, casarões e casinhas bucólicas em paisagens rurais.

Retratam as brincadeiras e afetos da infância, a família, o quintal com jabuticabeiras e bananeiras, a rua, a vizinhança. Reportam ainda as questões étnicas e de identidade dos povos de matriz africana e dos povos originários.

É o caso do bordado de Gláucia Santos do quilombo de Angra dos Reis, com duas mãos negras, que envolvem a bandeira brasileira e rompem os grilhões da escravidão no anseio de libertar o país das amarras que o escravizam.

Outro bordado é de Tânia Luíza de Paraíba do Sul com uma corrente arrebentada sobre o que poderia ser o palacete do Barão Ribeiro de Sá. Abaixo a frase “Vidas negras importam”  com a exclamação: “Viva 20/11”, data da morte de Zumbi, em que se celebra o Dia Nacional da Consciência Negra, decretada  feriado nacional em 2023.  

Fofocas bordadas

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Um terceiro bordado de Silviane Lopes de Teresópolis sobre Povos Originários traz dados demográficos que revelam o genocídio, com invasão das terras indígenas, mas também a resistência. A população em 1.500 estimada em 5 milhões, é reduzida a 70 mil em 1950 e volta a crescer em 2022 com 900 mil pessoas.

Cercada por árvores, a bandeira do Brasil sangra em vermelho no losango originalmente amarelo do ouro. A esfera azul celeste da faixa “ordem e progresso” é trocada por  trançado verde-amarelo similar ao adjaká  guarani.

No entanto, como ninguém é de ferro, uma fofoquinha de vez em quando nos alegra e nos ajuda a entender a história, como a estampada por Maria Mór, de Búzios. Em 2022, ela viu o coração de Dom Pedro I separado do corpo, num recipiente de vidro com formol, emprestado por Portugal ao Brasil para as comemorações do bicentenário da Independência. Bordou o retrato do Imperador e, com uma dose de humor, registrou a legenda com uma pergunta:

– Independência para quem, coração?

A resposta é dada através de um balão de pensamento por uma visitante diante da jarra de vidro, tendo atrás de si um indígena:

– Demonão da Titila.

Demonão era o apelido do imperador Pedro I e Titila, o da sua amante Domitila de Castro, a Marquesa de Santos, que com ele teve cinco filhos.  

Uma visita à exposição equivale a várias aulas de História ministradas pelas bordadeiras, que “transformam linhas em histórias feitas no ponto a ponto” e costuram poesia, memória e conhecimento no tempo. Por isso, os curadores querem itinerar pelas escolas de Niterói, entre as quais sugeri a Escola Democrática, a Aldeia Curumim, o Colégio Estadual Manuel de Abreu e a Escola Municipal Anísio Teixeira.  

Amazônia Azul  

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Outro bordado de interesse dos alunos é o de Carla Guedes, de Porciúncula, que retoma o tema ambientalista. Ela costurou o coração da terra ladeado por pés de café, bananeira, jabuticabeira e ipê com a frase da carta de Pero Vaz de Caminha ao rei Dom Manuel:

Nesta terra, em se plantando tudo dá”. Mas a artista acrescenta por conta própria: “Sem abuso”, que soa como uma advertência ao agronegócio, aquele que é pop no uso de agrotóxico, o que seria aplaudido pelos participantes da COP-30, em Belém. 

Aliás, bordadeiras/os levaram para a capital paraense um “cardume” de 110 obras de arte, reunindo artistas de 11 estados do Brasil. Os bordados  alinhavados em redes de pesca recolhidas do oceano foram montados em espaço expositivo do Museu Emílio Goeldi para o público da COP-30.

Trata-se da “Amazônia Azul” – conceito usado para descrever 4.5 milhões de km2 de área marítima brasileira, numa exposição idealizada pelo Projeto Fio às Cinco em Pontos em parceria com o Coletivo Linhas da Gamboa. 

– Queremos chamar atenção para o mar como patrimônio e defender os habitats marinhos da Amazônia Azul – diz Marisa da Silva. Destaca temas como Recifes, Manguezais, Praias, Dunas, Zonas Abissais, Estuários e Mar Aberto, além de Peixes, Mamíferos, Tartarugas e Corais.

Os bordados denunciam a poluição, as espécies invasoras, a pesca predatória, a destruição de habitats, os desastres naturais e as mudanças climáticas, tudo isso reutilizando sobras diversas, restos de panos e linhas, alguns encontrados na orla do mar.

bordadeiras%20tendlerA Amazônia Azul

dialoga com o Fio da Meada – um filme de 77 minutos do saudoso Silvio Tendler, que discute as conexões entre a crise ecológica contemporânea, o modo econômico, as desigualdades sociais e a injustiça ambiental. Ele propõe alternativas ao modo de vida predatório, promovendo uma conversa da Ciência e da Tecnologia com os Saberes Ancestrais que dão sentido à vida humana.

As imagens de Silvio Tendler e os desenhos e figuras em tecidos organizados por Ricardo Lima e Marisa da Silva (que apenas por uma letra não é Marina) nos permitem ouvir o canto do passarinho no ouvido de Eduardo Galeano.

P.S. Não é possível falar da Exposição Redescobrindo o Brasil em fios, sem mencionar cada uma e cada um de seus 28 artistas:

Bordadeiras e Bordadeiros da Exposição:

01. Ana Luiza Assis da Silva – Volta Redonda

02. Anete dos Santos de Oliveira (Nete Santos) – Pinheiral

03. Anissa Martins Peralta – Saquarema

04. Anna Karla Koschel – Rio das Flores

05. Arminda Coelho (Bida Coelho) – Itaipava

06. Carla  Guedes Pinto ( Divina Arte Guedes) – Porciúncula

07. Carlos Ernesto Barros de Alarcão – Maricá

08. Cleudeni dos Santos Melo (Cleo Melo) – Duque de Caxias

09. Ercilene Aguiar Oliveira – Cantagalo

10. Geza Cristiane Albernaz Domingues – Barra Mansa

11. Gláucia dos Santos Raimundo – Angra dos Reis

12. Gloria Maria Correia (Saíras Atelier) – Rio de Janeiro

13. Guaraciara Mendes Peixoto  – Petrópolis

14. Irenacy da Silva Bastos (Marias das Artes) – Três Rios

15. Jessiane Miliano Leal (Gessybordados) – Sapucaia

16. José Paulo Marques Caldas (Paulo Davi O Caboclinho) – Macaé

17. Julia Marcia Silva (Bordando o Futuro) – Itaperuna

18. Maria Cristina Henriques Soares (Cris Perrone) – Paty do Alferes

19. Maria Cristina Mannarino (Atelier Fio de Roca 83) – Tanguá

20. Maria José da Silva (Maria Mór) – Búzios

21. Maria Lígia Pinto Schueller (Líartes) – Cordeiro

22. Mariana Rabello Pinho – Cabo Frio

23. Marisa da Silva – Rio de Janeiro

24. Sandra Aparecida Barbosa (Sandrartes) – Valença

25. Silviane Lopes (Atelier Têxtil Teresópolis) – Teresópolis

26. Solange Vasconcelos Gavina – Niterói

27. Tadzia Maya (Ateliê Flor da Mata) – C. de Abreu/Silva Jardim

28. Tânia Luíza dos Santos Carlos – Paraíba do Sul

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Referências:

1.Ricardo Gomes Lima: Redescobrindo o Brasil em Fio. Texto da Exposição. Uerj-PR-3. 2022

2. Marisa da Silva: 200 anos de histórias e memórias bordadas. Texto da Exposição. Uerj-PR-3. 2022

3.  Thaís Fernanda Salves de Brito. Do enfeite à festa: o uso do bordado como narrativa, ação e engajamento em duas festas tradicionais brasileiras. Etnográfica. Revista do Centro em Rede de Investigação em Antropologia. Vol 26 (1). 2022. Edição Eletrônica (p.275-298)

4. https://www.youtube.com/@fioascincoempontos

5. https://www.facebook.com/fioascincoempontos

P.S. – Todo bordado é político no sentido mais amplo do termo. Mas alguns são predominantemente políticos. É o caso desse exibido na COP-30: “Anistia para golpistas não! Democracia Sempre!” Amém! Que o povo te ouça, Linhas da Gamboa e defenda a Constituição da República Federativa do Brasil. Ulysses Guimarães adoraria ter esse bordado em seu gabinete.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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