Aos 80 anos, amigo de Chico Mendes refunda “jornal das selvas” para denunciar governo Bolsonaro
Elson Martins resistiu à ditadura de 1964 e fundou “O Varadouro”, jornal alternativo que cobria o movimento seringueiro no Acre; para ele, que considera o atual governo ainda mais ameaçador, o agronegócio “vem com tudo, para destruir”
O jornalista acreano Elson Martins acabava de participar de uma importante reunião de trabalho na segunda-feira (11) quando, no fim da noite, começou a receber mensagens de diferentes colegas indignados com a notícia que se tornou uma das mais divulgadas no país: o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, acabara de chamar Chico Mendes, o sindicalista internacionalmente reconhecido como ambientalista, de “irrelevante” para o atual momento. Amigo do seringueiro durante as décadas de 70 e 80, ele viu ainda mais sentido em seu trabalho. Ele foi o fundador do Jornal Varadouro, o “jornal das selvas”, uma das mais importantes experiências da imprensa alternativa do país. Exatamente naquele dia ele começava a ser revivido.
O Varadouro foi fundado em 1977 e resistiu até 1981. A iniciativa tinha como objetivo cobrir e denunciar o impacto das políticas de colonização da Amazônia, incentivadas pela ditadura de 1964. Deu voz aos trabalhadores do campo, indígenas e seringueiros, auxiliando-os na organização do movimento, liderado por Chico Mendes. O jornal contou com 24 edições e chegou a rodar 7 mil exemplares. Foi o primeiro veículo a publicar uma entrevista com Chico Mendes, que se tornou um colaborador ativo da publicação.
O primeiro editorial do Varadouro dava a letra de sua relevância: “Rude, caboclo e sem técnica”. Com o slogan “um jornal das selvas”, foi criado para incomodar. Rapidamente a publicação se tornou material obrigatório nas mãos dos povos da floresta, que identificou na publicação, simples em forma e escrita, seu principal porta-voz. O próprio Chico Mendes andava pela mata distribuindo os exemplares aos ribeirinhos e indígenas. Muitos seringueiros se incomodavam com as letras pequenas, pois liam sob a luz fraca de suas lamparinas.
Hoje, às vésperas dos 80 anos de seu editor, o jornal pode ter função similar. “A coisa está muito mais brava, esse governo é mais ameaçador do que a ditadura”, diz Elson Martins. Ele começou na segunda-feira a apresentar a ideia de reativação das ideias e princípios do Varadouro:
– Na época, o Varadouro tomou partido da luta de Chico Mendes, mas como fizemos e pretendemos fazer agora, não xingaremos a mãe de ninguém, vamos introduzir instrução e informação, explicando como a soja prejudica os povos da floresta, como é importante a manutenção da floresta para barrar as mudanças climáticas. Esse é o espírito do Varadouro, valorizar a Amazônia e mostrar que o povo é doutor dos conhecimentos antigos da floresta.
Elson Martins nasceu no seringal de Nova Olinda (AC) e viveu em Rio Branco, Belém, Macapá e Belo Horizonte, onde começou seus estudos de cinema e jornalismo. Retornou à Amazônia, para Belém, como membro da Ação Libertadora Nacional (ALN), a mesma que imortalizou Carlos Marighella. Desligou-se da organização por não concordar com a guerrilha. Em 1975, voltou ao Acre — onde vive até hoje — como correspondente do Estadão, dando início à histórica cobertura da resistência dos seringueiros. “As outras pautas não tocavam tanto meu coração”, conta. “Quando cheguei aqui e a pauta principal eram os conflitos da Amazônia, cresci com essas ideias e aprendi muito com Chico”.
A nova versão do Varadouro ganhou página no Facebook no próprio dia em que o inspirador do jornal era difamado pelo ministro do Meio Ambiente. Haverá uma versão online e outra radiofônica – a depender ainda dos apoios. Segundo Martins, que afirma não saber mexer muito bem no computador, a nova equipe será composta por jornalistas jovens e engajados, que também organizarão oficinas de comunicação e palestras para as comunidades da floresta. “É utópico, mas é o que nos alimenta”, afirmou.
Confira aqui todas as edições publicadas pelo Varadouro.
Abaixo, a entrevista completa à repórter Julia Dolce.
De Olho nos Ruralistas – O senhor acredita que a fala do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, reforça a visão dos ruralistas que assassinaram o seringueiro?
Elson Martins – Eu só esperava uma fala como a do ministro vindo de alguém da UDR (União Democrática Ruralista). Ele não conhece a vida na Amazônia, não conhece nada sobre a história recente da ditadura, sobre a luta dos seringueiros, dos ribeirinhos, dos posseiros e dos índios em defesa da floresta. Chico nasceu e foi criado na floresta, era um homem doce, sincero, honesto.
Ele e os seringueiros salvaram o Acre, deixou um grande legado para a ecologia, o estado inaugurou o discurso ecológico no Brasil. Para quem tem bom senso e humanismo, Chico é uma figura intocável. Ele foi morto exatamente pela UDR e o ministro faz coro a esse assassinato.
Os seringueiros subletrados da floresta, no momento da ditadura, salvaram o Acre com seu sentimento, porque eram pessoas que lutavam pela vida. Eles viviam dentro da floresta alimentados pela floresta e sempre souberam valorizar o meio ambiente, porque era desse meio ambiente que eles viviam e sobreviviam.
Não havia política que os favorecia, eles não eram nem reconhecidos como categoria trabalhista. Fizeram um movimento criativo, diferenciado de outros movimentos de resistência que aconteciam no país.
De Olho – Como se deu sua aproximação com Chico Mendes? Foi por meio da criação do Varadouro?
Martins – Eu saí do Acre para estudar. Morava em Belo Horizonte quando comecei a escrever para o Estadão, mas as pautas da cidade, mesmo durante a ditadura com as pautas da resistência, não tocavam tanto meu coração.
Quando eu cheguei aqui a pauta principal eram os conflitos da Amazônia, cresci a partir dessas ideias. Nessa época fiquei muito amigo de Chico Mendes e aprendi muito com ele. Então criei o Varadouro.
Agora, estamos querendo reativar o espírito do jornal. Estamos fazendo um grupo com jovens jornalistas. O Varadouro circulou entre maio de 1977 até dezembro de 1981. Aí foi quando os jornais passaram a trabalhar com assuntos que eram considerados tabus e a imprensa alternativa foi se desmontando. Fomos trabalhar na imprensa diária.
Agora queremos reativar as ideias e os princípios do Varadouro. Começamos ontem a apresentar a ideia de reativação, precisamos arrecadar dinheiro, criar um site, talvez uma rádio. Estamos tentando.
De Olho – A reativação do jornal na atual conjuntura é uma forma de disputa de narrativas?
Martins – Vamos ver se dá, porque a coisa está muito mais brava, esse governo é mais ameaçador do que a ditadura. Eu acho. Bolsonaro ganhou aqui porque as pessoas, de modo geral, estão com essa linguagem eletrônica, as novas gerações que vivem com celular na mão quando não podem nem comprar roupas.
Então o que essa massa pode refletir? Ela aceita que Bolsonaro vai consertar as coisas, ele chegou aqui apontando arma e dizendo que acabaria com todos os petistas. O Varadouro tomou partido da luta de Chico Mendes, mas, como fizemos na época e queremos fazer agora, não vamos xingar a mãe de ninguém, acreditamos que a gente possa introduzir alguma instrução e informação, explicando com informações científicas sobre a soja, a importância da floresta para as mudanças climáticas.
Trabalhando com uma linguagem simplificada, facilitando o entendimento do diálogo. Esse é o espírito do Varadouro, valorizar a Amazônia, a floresta, e mostrar que o povo é doutor dos conhecimentos antigos da floresta.
As famílias precisam se valorizar, são potencialmente ricas, conquistaram as seringas e são donos, pais e avós disso. É utópico, mas é o que nos alimenta. Somos ambiciosos, queremos fazer oficinas para as comunidades, palestras.
De Olho – O que a visão de Salles, enquanto representante do governo, representa para este atual momento político vivido no Acre?
Martins – Eu acho que a vitória dos extrativistas não foi tão grande como se imaginava. Mataram Chico Mendes antes que todas as pessoas com essa denominação de povos da floresta tomassem conhecimento de suas potencialidades. É um estado rico e a riqueza está na floresta.
A ciência conhece muito pouco dessa riqueza, a gente sabe de produtos da floresta que alcançaram os mercados mais sofisticados do mundo. O óleo de copaíba, por exemplo.
O Acre também tem a segunda maior floresta de bambu depois da China, é um estado que oferece a sustentabilidade.
Chico não queria defender a floresta para ela ser intocada, ele queria o desenvolvimento sustentável, e ele conhecia isso porque até 80% da população do estado, nos anos 1960, vivia dessa riqueza e tinha essa relação com a natureza, que ensinava isso.
Havia uma característica na formação do cidadão acreano que é a solidariedade, a cumplicidade, e isso está acabando, nós temos nos últimos cinco anos a força das facções criminosas.
Todas a semana morrem entre cinco a sete jovens nas brigas de facções, com participação da polícia, e a gora Bolsonaro anuncia incentivos para a polícia do estado matar. As pessoas que formam o novo governo têm essa mentalidade dos pecuaristas que começaram a chegar aqui em meados dos anos 1970. O novo governo está tirando essas amarras deles.
Eles odeiam o PT e agora estão livres para atuar e seguir com seus projetos. Há uma diferença cultural muito grande entre a Amazônia, de modo geral, e as elites do Sul, Sudeste. Eles não se preocupam com sentimentos, querem riqueza, querem lucrar, e fazem de tudo para obter isso.