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Vidas Negras importam vivas!

Em artigo, Erica Malunguinho explica que o Estado tem tanta responsabilidade pela morte da população negra quanto a sociedade civil. “Para saber quem é você na fila do genocídio se pergunte e questione: onde estão os negros? Observe seu círculo social”, provoca a deputada paulista

Texto: Erica Malunguinho*

O genocídio é um fato mais do que dado. Os números do Atlas da Violência e do Anuário Brasileiro de Segurança Pública registram o que a experiência vivida pela população preta e periférica já sabem. Eu, por exemplo, sei de incontáveis crianças que cresceram comigo e que agora não estão mais vivas. Todas, obviamente, morreram de mortes não naturais. Amigas e amigos pretos também têm esses dados. Gente que some, deixando de existir por uma regra que habituamos ver.

Todos sabemos: há um genocídio em curso. Isso não é um fenômeno, e sim um projeto que tem raízes profundas na História do Brasil. A escravidão e a ausência de políticas públicas de inclusão, acrescidas da ojeriza às pessoas negras, resultaram no cenário em que somos super representados nas mazelas e sub-representados no que chamo de sociabilidade saudável.

O assassinato de George Floyd tirou do segredo palavras nunca ditas na imprensa brasileira: “Policial branco mata cidadão negro”. Tratando-se de acontecimentos semelhantes no Brasil, seria possível uma afirmação desta ordem? A resposta é sim e não. O teor de profundidade que um sistema de opressão como o racismo opera e como ele se exprime à moda brasileira, não seria suficiente para noticiar com precisão: Estado branco assassina cidadão negro.

Por que digo Estado? Além de haver muitos pretos nas corporações militares, há um jogo muito bem desenhado que encontra forças no mito sobre a diversidade brasileira: o bem conhecido mito da democracia racial, cujo um dos efeitos escamoteou convenientemente para a população branca os entraves de uma relação de poder violenta, bem como para os próprios negros sua real condição nessas terras.

A esse respeito, chama atenção os resultados da Pesquisa Nacional Por Amostras e Domicílios (PNAD), de 1976, cujo foco era averiguar mobilidade social e a cor das pessoas. Naquela pesquisa, foram registrados 136 cores. Qualquer caminho parecia melhor do que ser “negro”. Aliás, quem se sentiria confortável de estar associado a uma narrativa iniciada nos navios negreiros, que determinou a cultura negra como inferior: seja pelos traços físicos, seja pelo lugar de precarização econômica e social que é consequência dos mesmos?

Essa informação também desvela nuances sofisticadas do racismo, que perpassa pela noção de colorismo que, a grosso modo, diz respeito de quanto mais escura for a pele, menos oportunidades e mais associações negativas. É em grande parte, do preto escuro que escondem a bolsa e relacionam ao macaco. É importante afirmar que o colorismo não diminui a negritude de ninguém, mas que produz intersecções diferenciadas num país com letramento racial ainda incipiente.

O fato é que, além de um Estado branco, temos um modo operante branco, uma cultura de sociabilidade embranquecida. Falo “cultura de sociabilidade” porque quando se trata de cultura como expressão artística e imaterial, nós pretos somos bem vindos no carnaval, no samba, no maracatu e tudo que entretenha a branquitude.

Nesses casos, negras e negros são bem vindos se participarem como fazedores, mas nunca como gestores e, principalmente, obtendo os ganhos econômicos que toda essa animação produz. Quando se pensa em políticas públicas, o modelo se repete: pessoas negras são concebidas como destinatárias dessas políticas e nunca como escreventes, políticos, gestores e pensadores.

Assim, o Estado se soma à conveniência dos privilégios garantidos desde tempos coloniais. A Lei de Terras, de 1850, é um excelente exemplo de como se deu a divisão da posse e do direito fundamental à moradia. Essa legislação, criada no contexto internacional da pressão para o fim da escravidão, definiu que o acesso às terras no Brasil se daria por via da compra. Imaginem vocês uma pessoa escravizada, forçada ao trabalho incessante em condições sub-humanas e sem renda, adquirindo um lote?

Naturalizaram a ausência de pessoas pretas em espaços de sociabilidade saudável. Funciona assim: por um lado, somos super representados nos presídios, na situação de rua, nos empregos menos remunerados, por outro, e diretamente proporcional, somos sub representados nas carreiras com salários avantajados como engenharia, judiciário, medicina, tanto quanto na TV, jornais, na política, nas grandes empresas e nas universidades como docentes e reitores. As cotas estudantis, conquistadas a duras penas pelos Movimentos Negros, de certa forma, modifica o cenário discente, apenas.

O Estado tem tanta responsabilidade quanto a sociedade civil. Para saber quem é você na fila do genocídio se pergunte e questione: onde estão os negros? Observe seu círculo social. Se nós negras e negras estivermos neles apenas servindo, a lógica permanece. A nossa pele não deve determinar nosso trabalho, nossas escolhas e, principalmente, de estar vivo ou não. Se pergunte e pratique o antirracismo!

Movimente essa cena, assumindo sua responsabilidade neste processo. Pretos, em condições saudáveis e dignas de sociabilidade, deslocam economicamente e culturalmente uma rede gigante de outras pessoas pretas, que encontram caminhos para uma vida longe dos estigmas criados e alimentados pelo racismo.

Para resumir: é bom para todo mundo. “Vidas negras importam”, não exclui o direito à vida de ninguém, e sim escancara a participação do conjunto da sociedade na abjeção destas vidas. E, por fim, não achem que somos um corpo-massa-sólida-única. Ao contrário, somos subjetividades diversas, de espiritualidades ou não, mulheres e homens cisgênero, transgêneros, de sexualidades múltiplas, de formas e tamanhos infinitos. Humanidade que fala, né? Não é teoria, é prática desconstrutiva. Vidas Negras importam vivas!

* Erica Malunguinho é deputada estadual (PSOL-SP), educadora, artista, mestra em Estética e História da Arte e pernambucana.

Fonte: Alma Preta

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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