Violência institucional contra os povos indígenas

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O lugar do encarceramento na violência institucional contra no Brasil. Artigo expõe situação de indígenas encarcerados e em conflito com a lei no Brasil

Pot Michael Mary Nolan, Caroline Dias Hilgert e Viviane Balbuglio/Assessoria Jurídica do CIMI

Este artigo tem como objetivo visibilizar a questão do tratamento penal e prisional reservado às pessoas indígenas no Brasil. A ideia é situar o cárcere como um espaço intrinsecamente violento na medida em que a prisão é utilizada pelo Estado como forma de controle e contenção de populações específicas, como negras e indígenas.
No caso dos povos indígenas, isso se delineia de forma que os processos de criminalização a que estão submetidos, principalmente por conta de acusações por condutas relacionadas a drogas, ao patrimônio ou, até mesmo, contra a vida, costumam estar fortemente conectados à desigualdade social que enfrentam diariamente no país, a qual, por sua vez, se intensifica primordialmente pela demora do Estado brasileiro na solução dos conflitos pela demarcação das terras indígenas.
Iniciamos esse apresentando uma informação pouquíssimo difundida, mas de um episódio que ouvimos muito falar nas mídias já no início do ano de 2017: durante o massacre de 56 pessoas presas na rebelião do Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), localizado no estado do , o Ministério Público Federal (MPF) identificou que dentre elas cinco pessoas mortas eram indígenas. Ao mesmo tempo, o governo do estado do Amazonas negou informação, afirmando que nenhuma pessoa indígena teria morrido ou teria sofrido lesões durante a rebelião – essa gravíssima situação é tema de uma Ação Civil Pública (ACP) em tramitação na Justiça Federal do Amazonas sob o número: 10004827020174013200.
Assim, este episódio do massacre em Manaus e da disputa da narrativa sobre o fato de haver ou não indígenas presos ali, nos parece significativo para iniciarmos uma reflexão sobre a invisibilidade e a ausência de direitos que pessoas presas estão submetidas frente ao Estado; o que, por sua vez, se torna ainda mais escancarado quando focamos um olhar direto ao encarceramento de pessoas indígenas
Observa-se que nem sempre estas pessoas são identificadas pelo sistema de justiça criminal como indígenas, porque não foram perguntados, porque não têm espaço/informação para exercer o direito à autodeclaração ou porque temem qualquer forma de por se identificarem como indígenas
Uma primeira reflexão essencial e que igualmente nos levou ao levantamento dos dados sobre pessoas indígenas presas via Lei de Acesso à informação (LAI), realizado pelo Instituto das Irmãs de Santa Cruz (IISC) em parceria com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que apresentaremos no decorrer do texto, é a identificação indígena.
Observa-se que nem sempre estas pessoas são identificadas pelo sistema de justiça criminal como indígenas, porque não foram perguntados, porque não têm espaço/informação para exercer o direito à autodeclaração ou porque temem qualquer forma de repressão por se identificarem como indígenas.
Sem a devida identificação, elas estão, portanto, sujeitas a mortes invisíveis frente ao Estado – sejam estas mortes como as que de fato ocorreram durante o massacre em Manaus ou mortes simbólicas de indígenas presos condenados a penas altíssimas e que ficam completamente esquecidos nas prisões brasileiras.
Segundo o levantamento realizado via LAI já mencionado, no ano de 2019 havia aproximadamente 1.080 indígenas em situação de prisão no Brasil, sendo 1.017 homens e 63 mulheres. Os dados levantados também indicam que os estados com maiores taxas de encarceramento de pessoas indígenas eram respectivamente Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Ceará.
O mesmo levantamento apurou que entre os anos de 2017 e 2019, o encarceramento de pessoas indígenas no Brasil aumentou cerca de 45%. Dentre os dados disponíveis, contabiliza-se mais de 37 povos indígenas representados no sistema prisional no ano de 2019. No entanto, estimamos que este número pode ser muito maior, já que apenas nove estados da federação forneceram informação sobre a etnia ou o povo a que a pessoa indígena presa pertencia.
Relembramos também que foi no mês de junho de 2019, que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou a Resolução 287, que passou a estabelecer procedimentos ao tratamento das pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade, e dá diretrizes para assegurar os direitos dessa população no âmbito criminal do poder Judiciário. Esta Resolução, portanto, diz respeito ao processo penal e à execução penal brasileira de pessoas indígenas.
A Resolução, em seu início, enumera legislações nacionais e internacionais que resguardam direitos das pessoas indígenas e que devem ser somadas no que se refere à proteção e garantia dos direitos daqueles e daquelas que respondam a processo criminal no Brasil; são elas: a Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), as Regras de Bangkok (Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras), o Estatuto do Índio (Lei 6001/1973) e também a Lei 13.769/2018 (dispõe sobre a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar da mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência e a disciplina do regime de cumprimento de pena privativa de liberdade).
A cruel realidade vivida pelo sistema prisional brasileiro deveria nos obrigar a investigar e dialogar com os povos indígenas brasileiros para fomentar a utilização de suas próprias formas de resolução de conflitos.
Embora entendamos que se trata de uma normativa relevante na luta pelos direitos dos povos indígenas no Brasil e que demarca alguma visibilidade para pessoas indígenas presas ou sobreviventes do sistema prisional, a Resolução se encontra, como a maior parte de nossas leis, distante da realidade dos povos indígenas no Brasil e requer esforços para sua efetiva implementação.
Quando lideranças religiosas ou da comunidade são presas, pode-se criar dificuldades ou até mesmo verdadeiros impedimentos, por exemplo, à realização de rituais importantes e essenciais à existência diária destes povos.
É importante ressaltar que a utilização da prisão como principal resposta punitiva não é óbvia, não corresponde à de vários povos indígenas no Brasil e no mundo, nem é a solução prioritária prevista em lei. A cruel realidade vivida pelo sistema prisional brasileiro deveria nos obrigar a investigar e dialogar com os povos indígenas brasileiros para fomentar a utilização de suas próprias formas de resolução de conflitos.
Observa-se que para muitos povos, ter uma pessoa de sua comunidade presa pode vir a gerar uma ruptura/conflito entre a pessoa presa com a própria comunidade a que pertence e com sua cosmologia, gerando, muitas vezes, impactos graves e imprevisíveis dentro dos conceitos coletivos, da cultura e organização social.
Neste sentido, em algumas aldeias indígenas, quando lideranças religiosas ou da comunidade são presas, pode-se criar dificuldades ou até mesmo verdadeiros impedimentos, por exemplo, à realização de rituais importantes e essenciais à existência diária destes povos. As variáveis possíveis do impacto da imposição de prisão a um membro de uma comunidade indígena são tantas que, em boa hora, a Resolução também prevê a realização de um laudo antropológico no processo criminal.
Por estas e outras razões, a prisão de uma pessoa indígena gera consequências individuais e também coletivas na perspectiva de sua cultura e vivência perante suas comunidades – trata-se de uma dupla punição. Por isso, a Resolução 287 e as demais legislações mencionadas neste artigo entendem que a prisão deve ser uma resposta punitiva excepcionalíssima, devendo-se levar em consideração as formas próprias de resolução de conflitos dos povos indígenas, dando-se, em qualquer hipótese, preferência a formas alternativas ao cárcere.
Reduzir os dados da violência institucional vivenciada por pessoas indígenas presas no contexto atual do Brasil é, sem dúvida, desencarcerar.
Por outro lado, este entendimento, da excepcionalidade da prisão para pessoas indígenas não é compartilhado pela maioria das pessoas operadoras de direito no Brasil, as quais dificilmente têm conhecimento da diversidade dos povos e, sobretudo, dos direitos específicos que a lei os reserva.
Reduzir os dados da violência institucional vivenciada por pessoas indígenas presas no contexto atual do Brasil é, sem dúvida, desencarcerar. Porém, enquanto estão presas, há a necessidade de se garantir à pessoa indígena acesso à assistência material, de , jurídica, educacional, social e religiosa, a qual também deverá ser prestada conforme as especificidades culturais de cada povo. Isto inclui, igualmente, o fornecimento de em acordo com seus costumes, bem como a presença dos pajés e dos líderes espirituais nos estabelecimentos prisionais, assim como reconhecer os laços de parentesco reconhecidos pelo povo para permitir visitas, dentre outras situações.
Por fim, observa-se que tanto o Judiciário quanto o Executivo, principalmente as autoridades prisionais, identificam, muitas vezes sem sequer lhes perguntar, uma pessoa indígena meramente como parda, sem a devida anotação de seu povo. Ainda, quando as autoridades fazem uso do critério autodeclaratório, é preciso levar em consideração que muitas pessoas indígenas, mesmo quando perguntadas, não se identificam como tal por não conhecerem seus direitos e/ou terem receio de serem discriminadas.
Ter uma dimensão mais precisa da quantidade de pessoas indígenas que estão encarceradas no Brasil, assim como a quais povos essas pessoas pertencem, seus costumes, seus contextos locais e as condições dessas prisões são alguns dos caminhos aqui propostos para que possamos compreender a relevância de aplicação massiva de medidas desencarceradoras às pessoas indígenas e, simultaneamente, elaborar estratégias para políticas públicas nacionais e locais com o propósito de prevenir o aprisionamento dessas pessoas e viabilizar seus direitos tradicionais e ao Bem Viver.

Artigo publicado originalmente no Relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2019. Clique aqui para ver o documento completo.
 
Fonte: CIMI
 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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