Armas: professora inesquecível, presidente olvidado

Armas: professora inesquecível, presidente olvidado

Por José Bessa Freire/TaQuiPraTi
Buscava eu um tema para esta nossa conversa semanal quando Alex, um amigo querido, telefona nesta sexta (15) para me parabenizar: 
– Mestre, esse país será outro quando pudermos comemorar o “Dia do professor inesquecível” e o “Dia do presidente deslembrado”. 

Armas: professora inesquecível, presidente olvidado

Buscava eu um tema para esta nossa conversa semanal quando Alex, um amigo querido, telefona nesta sexta (15) para me parabenizar: 
– Mestre, esse país será outro quando pudermos comemorar o “Dia do professor inesquecível” e o “Dia do presidente deslembrado”. 
Pronto. Encontrei o que procurava. Agradeci. Decidi celebrar ambos os dias, recordando dois assaltos ocorridos na cidade do Rio, que me permitem formular uma pergunta singela: qual a melhor forma de reagir a um assalto à mão armada? 
O primeiro deles envolveu um deputado federal, que depois se tornaria presidente da República, numa eleição na qual se recusou a debater com seu adversário, que era justamente um professor inesquecível. A do confronto de ideias impediu que os eleitores avaliassem as propostas de cada um e abriu espaço para a proliferação de , entre elas a mamadeira de piroca, o kit gay e o livro “Aparelho Sexual e Cia” que teria sido distribuído nas creches e escolas de na administração do prefeito Fernando Haddad. Tudo mentira.
O outro assalto aconteceu dentro de um ônibus contra pessoas desarmadas, entre elas uma professora aposentada do ensino fundamental. Os resultados foram surpreendentes.
Tiro de feijão
bolsonaro 3(1)Foi no dia 4 de julho de 1995. Depois de acompanhar na televisão as comemorações da Independência dos Estados Unidos – país por ele idolatrado salve salve – o então deputado federal Jair Bolsonaro (PPR-RJ vixe vixe) cavalgando sua moto parou num sinal na rua Torres Homem, em Vila Isabel. Foi abordado por dois jovens. Apesar de praticante de tiro ao alvo, o capitão da reserva ficou encagaçado e entregou tudo: a Honda Sahara 350, uma pistola Glock calibre 380 carregada que trazia debaixo da jaqueta, o capacete… só não entregou as calças e otras cositas más porque não lhe foi pedido.
– Mesmo armado me senti indefeso – ele se queixou na 20ª Delegacia Policial. Agora, como presidente da República, protegido por enorme aparato de segurança pago pelo contribuinte, virou valentão e ferrabrás, defendendo aquelas armas de fogo que não teve a coragem de usar. Há duas semanas, na sexta (01 de outubro), debochou sob aplausos de apoiadores no Palácio do Planalto:
– “O Lula acabou de dizer que ele vai desarmar o povo. Inclusive a esquerda fala que a gente não come arma, come feijão.  Tem que todo comprar fuzil, pô. Povo armado jamais será escravizado. Eu sei que custa caro. Aí tem um idiota: Ah, tem que comprar é feijão. Cara, se você não quer comprar fuzil, não enche o saco de quem quer comprar. Quando invadirem sua casa, dê tiro de feijão”. 
Esse é o presidente de quem nos envergonhamos e que queremos deslembrar. Na véspera (30 set), sentou ao lado de um menino vestido com a farda da Polícia Militar de e apontou para o alto uma arma de brinquedo, que estava na mão da criança. Ele havia anunciado em dezembro de 2020 a isenção de imposto de 20% sobre a importação de armas de fogo, enquanto sua proposta de reforma tributária fazia o caminho inverso ao taxar o livro, antes isento, com 12%.  Ele não quer feijão e nem muito menos livros, quer armas.  
– O Brasil se converteu em um “eldorado” para a indústria de armamentos – escreveu o advogado criminal Luís F. Carvalho Filho (Folha SP), para quem “o engajamento da família Bolsonaro neste bilionário negócio merece ser fiscalizado por procuradores da República”.
Essa política armamentista foi criticada no dia da padroeira do Brasil pelo arcebispo de Aparecida (SP), Dom Orlando Brandes que defendeu “uma república sem corrupção, sem mentira e sem fake news. Um pátria amada não pode ser uma pátria armada”.
Tiro de letras
livro%20e%20revolverNo outro assalto, dentro de um ônibus, a arma de defesa usada acabou sendo o livro. Alice, a protagonista principal, foi professora no projeto “Escola do Amanhã” e na biblioteca popular Lima Barreto, em Nova Holanda, no Complexo da Maré, o maior agrupamento de favelas do Rio. Já aposentada, decidiu cursar Biblioteconomia na UNIRIO, onde foi minha aluna na Comunicação. Ela narrou em sala de aula o episódio registrado em outra crônica com riqueza de detalhes e que vai aqui resumido.
De regresso à sua casa no ônibus da Linha 388 Carioca-Santa Cruz, no ponto do Cemitério do Caju subiram dois jovens menores de idade. Na parada seguinte, em Manguinhos, entraram mais pessoas, entre elas um rapaz com tênis, bermuda cáqui, camisa xadrez e boné azul, cuja aba dobrada para baixo meio-que escondia seu rosto. Na altura do Hospital de Bonsucesso, ele assume o comando da operação, aponta para o motorista uma pistola calibre 40 e anuncia o assalto com o ônibus em movimento. Lá atrás, o outro assaltante ameaça o cobrador com outra arma.
Momentos de pânico. Ele avisa que se reagirem joga gasolina no ônibus, toca fogo e mata todo mundo. O terceiro assaltante desliza pelo corredor do ônibus com uma sacola, recolhendo pertences: dinheiro, celulares, smart phone, relógios, aliança, cordão, todo tipo de joia e até um notebook. – Atira naquele que esconder alguma coisa – ordena o De Boné. O ônibus segue acelerado. Quando já haviam terminado o saqueio, Alice viu a cara do De Boné e gritou: – Wanderniiiiiiilson!
O  aluno que ela havia alfabetizado reconheceu a mestra, a única pessoa além da mãe, que o chamava pelo nome de batismo.
– Sujou! Sujou! Devolve tudo – ordenou Wandernilson. Eles restituíram a cada passageiro o que haviam roubado. Depois desceram, talvez para assaltar outro ônibus no qual não houvesse uma professora inesquecível armada com um livro. O presidente que será para sempre deslembrado jamais poderá entender que o tiro de letras disparado por uma alfabetizadora mata a ignorância humana e funciona melhor que uma pistola Glock. Não é porte de armas que a população carece, mas porte de livros.
P.S. 1 – Nossa total solidariedade à inesquecível professora Márcia Mura, da rede estadual de Rondônia, que foi afastada das aulas, acusada pela Secretaria de Educação de trabalhar apenas a cultural local na escola de uma comunidade ribeirinha localizada dentro do território ancestral mura.  Márcia Mura, doutora em Social pela USP e mestra pela Federal do Amazonas, organizou recentemente a caravana na Marcha das Mulheres Indígenas em contra o com criticas às violações dos direitos indígenas pelo governo Bolsonaro. O fato teve repercussão internacional. Voltaremos ao assunto.
P.S. 2 – A imagem do disparo de letras foi uma adaptação da charge do genial cartunista, ilustrador e caricaturista J. Bosco, que publica seus trabalhos desde 1988 no jornal O Liberal, de Belém do Pará. Suas charges foram veiculadas em revistas e jornais de circulação nacional e internacional. http://jboscocartuns.blogspot.com/2019/03/livro-e-melhor-arma.html.
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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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