A Missa dos Quilombos, 40 anos depois

A Missa dos Quilombos, 40 anos depois

A Missa dos Quilombos, 40 anos depois –

Daquela noite de 1981, a Missa dos Quilombos lançava uma luz sobre as raízes do racismo e sobre a resistência dos mais explorados entre os , os trabalhadores e as trabalhadoras negras…

Por Tierra

Ecoou a voz de , capaz de comover até as pedras que vibravam sob nossos pés no Largo do Carmo, no Recife, naquela noite:

“Em nome do Deus de todos os nomes:/ Javé, Obatalá, Olorum, Oió…” 

Ecoou a percussão de Robertinho Silva e seus companheiros como se o couro dos atabaques golpeados pelas as palmas das mãos, até minutos antes cobrisse nosso próprio coração, agora exposto. O coração vulnerável de milhares de homens e mulheres de todas as cores, reunidos em frente à Igreja do Carmo, naquele 22 de novembro, há 40 anos.

Há testemunhos que por si sós justificam a ousadia daquela celebração: “E vi meu corpo sair dançando, embalado pelos tambores. Como se meu corpo soubesse aquela música desde antes de eu nascer, sem que eu própria tivesse conhecimento dela…”

Ao sul da razão, aqui ao sul da linha do Equador, a consciência nasce de dentro da tempestade e da comoção… dito de outro modo: conheço aquilo que me comove. Naquele sentido de mover com. Quando a consciência se converte em ação transformadora.

Os fiéis assistiram ali um rito romano, que obedecia rigorosamente ao cânone católico. Não fora concebido como um espetáculo. Mas, como uma confissão pública de cumplicidade com o massacre de uma raça, em nome da exploração colonial. Com todos os seus momentos e componentes, tratava-se de uma missa.

A celebração foi presidida por um dos poucos bispos negros do , naquele momento. O mineiro Dom José Pires, arcebispo da Paraíba. A seu lado, o anfitrião, D. Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, que nos propôs o desafio de realiza-la, D. Tomás Balduíno, bispo de Goiás, D. Marcelo Carvalheira, bispo de Campina Grande, D. José Brandão, bispo de Propriá e Pedro Casaldáliga, bispo de S. Félix do Araguaia.

Com ela, no ambiente opressivo da ditadura militar, já em declínio, um negro – uma das mais elevadas expressões do talento, sensibilidade, criatividade e da voz na história da música brasileira –, um catalão errante que fez do Araguaia sua pátria e um sertanejo recém-saído dos cárceres, ofereciam sua contribuição e seu verso para introduzir em espaços sociais e culturais mais amplos um tema interditado na sociedade brasileira: o combate ao racismo.

Nesse país votado ao absurdo, aquela ousadia chegava pelas mãos de uma instituição conservadora, a Igreja Católica que historicamente, como afirmou D. José Maria Pires em sua homilia, “frequentou mais a Casa Grande do que a Senzala”.

Causou impacto e foi perseguida “no Templo e no Pretório”, como diria Pedro Casaldáliga. Como tudo que, neste país, se aproxime com o desejo de desvelar o estigma da escravidão, a violenta matriz que modelou o perfil das desigualdades econômicas, sociais e culturais que nos acompanham há cinco séculos.

A Missa dos Quilombos foi alcançada sem demora pela interdição ditada pelo cânone da Sagrada Congregação da Doutrina da Fé – ex-Santo Ofício – dirigida pelo Cardeal Joseph Ratzinger. Foi proibida sumariamente como celebração da Eucaristia.

O decreto da Cúria secundava, em alguma medida, a reação irada das pernambucanas, inconformadas com a celebração da “Missa Negra”, coisa de satanás, aquela profanação do culto promovida por Hélder Câmara, o bispo dos comunistas”, estamparam os jornais.

A reação da oligarquia e o decreto da Cúria chegaram tarde. A gente humilde das comunidades, os movimentos de juventude que se constituíram nos Grupos União e Consciência Negra – Grucon, no âmbito da própria Igreja Católica e mesmo em movimentos laicos, mais avançados como o Movimento Negro Unificado (MNU) que se constituía em diversas regiões do país, se apropriaram do texto e souberam extrair de sua força, de sua capacidade de comover, elementos para formação de consciência, no trabalho de base que caracterizou aquele período.

Realizaram, a seu modo, o sonho dos criadores: multiplicaram o alcance, fizeram chegar aos olhos, aos ouvidos e aos corações daqueles que buscavam se agregar nas organizações populares que nasciam ou renasciam na resistência à ditadura. Cumpriam, assim, o propósito anunciado no Canto de Abertura, quando os negros invadem a Igreja:

“Estamos chegando do fundo da terra,/ estamos chegando do ventre da noite,/ da carne do açoite nós somos,/ viemos lembrar.

 Estamos chegando da morte nos mares,/ estamos chegando dos turvos porões,/ herdeiros do banzo nós somos,/ viemos chorar.

 Estamos chegando dos pretos rosários,/ estamos chegando dos nossos terreiros,/ dos santos malditos nós somos,/ viemos rezar.

 Estamos chegando do chão da oficina,/ estamos chegando do som e das formas,/ da arte negada que somos, viemos criar.

Estamos chegando do fundo do medo,/ estamos chegando das surdas correntes,/ um longo lamento nós somos,/ viemos louvar.

(…)

Estamos chegando dos ricos fogões,/ estamos chegando dos pobres bordéis,/ da carne vendida nós somos,/ viemos amar.

Estamos chegando das velhas senzalas,/ estamos chegando das novas favelas,/ das margens do mundo nós somos,/ viemos dançar.

Estamos chegando dos trens dos subúrbios,/ estamos chegando nos loucos pingentes,/ com a entre os dentes chegamos,/ viemos cantar.

Estamos chegando dos grandes estádios,/ estamos chegando da escola de samba,/ sambando a revolta chegamos,/ viemos gingar.

(…)

Estamos chegando do ventre das Minas,/ estamos chegando dos tristes mocambos,/ dos gritos calados nós somos,/ viemos cobrar.

Estamos chegando da cruz dos Engenhos, estamos sangrando a cruz do Batismo, marcados a ferro nós fomos,/ viemos gritar.

Estamos chegando do alto dos morros,/ estamos chegando da Lei da Baixada,/ das covas sem nome chegamos,/ viemos clamar.

Estamos chegando do chão dos Palmares,/ estamos chegando do som dos tambores, dos Novos Palmares nós somos, viemos lutar.” (Boletim do CIMI, no 76, Goiânia, 1981)

A Missa dos Quilombos, sem dúvida, contribuiu para consolidar o 20 de Novembro como Dia Nacional da Consciência Negra, instituído pelo Movimento Negro Unificado em 7 de julho de 1978, em Salvador, como contraposição ao 13 de maio, data oficial da Abolição.

Cumpriu, desse modo, no espaço que lhe é próprio, portanto, no campo dos valores e da cultura, a afirmação da palavra Quilombo reconhecida como espaço de liberdade e emblema maior das lutas históricas contra a escravidão. E projetou sua influência simbólica para definir o caráter libertário dos movimentos étnicos que se somavam às lutas populares para resistir à ditadura naquele momento. Ao abordar de forma afirmativa o conteúdo das lutas dos afro-brasileiros escravizados e seus descendentes, a Missa dos Quilombos lançava uma luz sobre as raízes do racismo e sobre a resistência dos mais explorados entre os trabalhadores. Os trabalhadores e as trabalhadoras negras.

O partido que nascia das grandes mobilizações operárias do ABC buscava conferir voz própria aos trabalhadores. Sem intermediários. Levaria ainda algum tempo para incorporar a percepção profunda do significado do racismo que permeia estruturalmente as relações sociais, políticas e culturais do país. E, em consequência, para incorporar a dimensão de raça à sua estrutura organizativa interna, à sua pauta e ao seu programa.

O tempo necessário para nos darmos conta de que o país mudou e com ele o perfil das classes trabalhadoras que desafiam a imaginação das esquerdas. E compreendermos duas fecundas lições do mestre Florestan Fernandes, referência maior do pensamento das esquerdas brasileiras sobre a inserção do negro na sociedade de classes:

A primeira:“A revolução da qual ele (o negro) foi o motivo não se concluiu porque ele não se converteu em seu agente – e, por isso, não podia leva-la até o fim e até o fundo. Hoje, a oportunidade ressurge e o enigma que nos fascina consiste em verificar se o negro poderá abraçar esse destino histórico, redimindo a sociedade que o escravizou e contribuindo para libertar a Nação que voltou as costas à sua desgraça coletiva e seu opróbio.” (Significado do Protesto Negro, pág. 35, Expressão Popular e Fundação Perseu Abramo, S. Paulo, 2017).

E, na segunda, conclui: “Nada de isolar raça e classe. Na sociedade brasileira, as categorias raciais não contêm, em si e por si mesmas, uma potencialidade revolucionária. De onde vinha o temor dos brancos, nos vários períodos escravistas? Do entroncamento entre a escravidão e estoques raciais dos quais eram retirados os contingentes que alimentavam o trabalho escravo. Essa superposição ou paralelismo (como escreveu Caio Prado Júnior) ou essa estrutura simultaneamente racial e social conferia ao escravo a condição do “vulcão que ameaçava a sociedade.” (idem).

Quarenta anos depois, daquela noite de 1981, no Largo do Carmo, no Recife, a Missa dos Quilombos guarda uma dolorosa atualidade. Paraisópolis, Jacarezinho, Varginha… nos confirmam que no país que mais mata jovens, negros, pobres, das periferias dos grandes centros urbanos, mais do que nunca é necessária a compreensão de que a revolução social brasileira do século 21, ou será negra, ou não será revolução.

Pedro Tierra é poeta. Escreveu com Pedro Casaldáliga e Milton Nascimento a “Missa dos Quilombos”.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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