Formosa

EM COUROS, A COBERTURA DOS RANCHOS ERA DE CAPIM

Em Couros, ao contrário do que reza a lenda, não havia telhados de peles. Os ranchos eram cobertos com capim. O registro deste fato histórico encontra-se no livro “Álbum de Formosa” (2013), obra póstuma do escritor formosense Alfredo A. Saad.

A cobertura dos ranchos era feita com capim (uma gramínea provavelmente do gênero Imperata) e com uma ciperácea do gênero Cyperus (o “capim agreste”), ou, ainda, com palhas dos coqueiros guariroba, xodó e indaiá.

Apoiados sobre os esteios centrais, para formar a cumeeira, caibros de madeira roliça ligavam-se aos quatro esteios dos ângulos das paredes.

Sobre essa armação de madeira roliça, uma treliça de ripas de bambu fatiado, ou de coqueiro, recebia o capim, ou as palhas isolantes do calor do sol, ou protetores da chuva.

Para as ripas, inicialmente, antes da chegada das ferramentas de corte, eram utilizadas hastes de bambus inteiras, ou varas, retiradas de inúmeras plantas de galhos retos, como as pindaíbas.

A opção pela cobertura com a ciperácea oferecia a vantagem de a planta crescer em touceiras, já prontas para o uso, bastando cortá-las, amarrá-las, e deixa-las secar.

Mesmo as pessoas que que dispunham de recursos (fazendeiros e vendeiros ricos, ou os negociantes de couros de gado e de peles silvestres) que almejavam construir casas mais confortáveis, seguiam o modelo tradicional do rancho de capim.

Tanto na divisão interna quanto na técnica da construção, a casa de telha, com paredes de taipa de pilão, era apenas um rancho coberto de telhas e, até quando se aceitou a utilização de novos materiais de construção de paredes, como os adobes de barro cru, ou os tijolos de barro cozido, as habitações (…) não apresentaram melhoras significativas no que se refere ao conforto oferecido aos moradores.

Vivia-se melhor nos ranchos abertos, sem paredes, que dispunham apenas de teto de capim do que nos abafados e sufocantes ranchos fechados, como [os daqueles moradores] da Lagoa Feia. 

Nesses ranchos, a fumaça e o calor originados do fogão imprimiam uma característica peculiar: não havia dissipação permanente de nenhum deles, e a vida no interior das casas era um exercício permanente de resistência ao calor e à fumaça, mesmo que o fogo já estivesse apagado.

É claro que os ranchos sobre cujas paredes de treliça de madeira não era aplicado o barro eram mais confortáveis, porque ventilados. Em compensação, eram muito frios, nas noites do meio do ano, ou nas noites chuvosas do fim do ano.

Mesmo durante o dia, os ranchos cobertos de capim, este já enegrecido pela fumaça, eram muito escuros. As paredes barreadas pouco permitiam a entrada da claridade ofuscante do sol tropical. Uma ou outra fresta deixava passar filetes de luz que mal permitiam divisarem-se contornos naquela penumbra.

A utilização de lamparinas, ou candeias, era, então, quase obrigatória, durante o dia, no interior dos ranchos.

Foto: Ilustrativa. Não encontramos fotos de casas formosensess nos termos descritos. Foto: hiltonfranco.com.br

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CORUJÃO E ROMÃOZINHO : MITOS E LENDAS DO ARRAIAL DOS COUROS

Formosa antiga 1 prefeitura

Como em todos os lugares do mundo, a escuridão da noite propiciava o surgimento de lendas e mitos, envolvendo entidades fantásticas, assombrações aterrorizantes, monstros fabulosos. Em Formosa, duas entidades serviram, durante muito tempo, e persistiram até meados do século vinte, como meio para os pais amedrontarem as crianças e, daí, controlá-las: o Romãozinho e o Corujão. Não é sabida e época em que tais mitos foram introduzidos na região.

Romãozinho em tudo era parecido como Saci, nascido nos campos do Rio Grande do Sul. Era um menino amaldiçoado pela mãe, em razão das maldades que cometeu contra o pai e, como o Saci, perseguia viajantes nas estadas e preparava-lhes armadilhas, agredia-os e botava a perder a comida preparada para viagem, tão fundamental nas longas travessias pelo sertão.

Essas duas entidades serviam para justificar a pouca durabilidade dos alimentos adrede preparados sem cuidados e sem tecnologias adequadas para as longas viagens pelo interior do país.

Corujão não tem similaridade com qualquer outro mito brasileiro: era uma coruja enorme, cerca de um metro de altura, que possuía longa orelhas (sic) rastejantes, cujos ferimentos, pelos espinhos e pelas pedras dos caminhos, faziam-na gemer, tristemente, ao longe, mergulhada na escuridão da noite.

Alguns privilegiados corajosos  diziam ter enfrentado o Corujão e saído incólumes do encontro. Não se sabe, porém, se a entidade era, de alguma forma, agressiva. Tudo indica que os gemidos é que aterrorizavam a população.

A mula-sem-cabeça, mito bastante difundido no Brasil, também aterrorizava a população de Formosa. Eventualmente, mencionava-se o lobisomem, que vagava nas noites de lua cheia da Quaresma. As histórias de lobisomem, porém, surgiram tardiamente na cidade e podem mesmo ter sido importadas, já em pleno século vinte.

Ao lado das entidades fantasmagóricas, os habitantes de Couros e, depois, Formosa, sempre sentiram temores que comumente difundiam-se na população. Eram medos atávicos dos assaltantes, das gripes, da varíola, das invasões da cidade por bandos armados, bem como da polícia estadual, sempre afeita às ameaças e às agressões.

Asim, até os anos cinquenta do século passado, eles inquietaram-se ante entidades fictícias e entidades reais, estas sempre mais ameaçadoras do que aquelas. O crescimento da população, com a construção de Brasília e a chegada de pessoas de todo o país, contribuiu preponderantemente para o desaparecimento do medo das entidades imaginárias, mas não do medo das reais.

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Romãozino – Acervo IVB

Alfredo A. Saad foi um escritor primoroso. Seu livro “Álbum de Formosa” traz histórias inéditas, fundamentais para a compreensão da história social do município. Devia ser adotado nas escolas, devia fazer parte do acervo das bibliotecas, devia ser o presente institucional do município aos e às visitantes ilustres da cidade.

Seu filho Alfredo Antonio Saad Filho assim o descreve:

Alfredo Antonio Saad faleceu em 2011. Entre seus papéis, encontravam-se os originas do Álbum de Formosa.

Essa obra foi escrita por amor à cidade onde ele nasceu, e onde viveu alguns dos melhores dias de sua vida. Formosa foi, também, sua referência de família, não apenas por ser a morada de seus pais e de vários parentes, mas por ter sido o núcleo formativo de sua trajetória de vida, seu principal referencial de memória e seu local de acolhida.

Formosa foi a sua casa e este livro é um retorno a ela.

Álbum de Formosa é uma obra histórica e de anedotas, reconstituindo a trajetória da cidade, recontando passagens significativas de sua evolução, e relatando personalidades e momentos que a formaram.

O livro parte de um ponto de vista intensamente pessoal para oferecer um relato único, irônico, ácido,  cômico e melancólico das perdas impostas pelo tempo, pelo descuido e pelo progresso da cidade.

Ele funciona, assim, como um alerta para a necessidade de preservação da memória histórica e arquitetônica da cidade, como âncoras de identidade de seus habitantes.

 

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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